Cidades

Templos da cultura candanga

Grandes símbolos da cultura na capital, o Cine Brasília e o edifício do Museu de Arte de Brasília (MAB) completam, neste ano, 60 anos. Enquanto um segue sendo um dos principais pontos de entretenimento, o outro tenta se reerguer depois de quase 13 anos fechado

Correio Braziliense
postado em 19/01/2020 04:07
Grandes símbolos da cultura na capital, o Cine Brasília e o edifício do Museu de Arte de Brasília (MAB) completam, neste ano, 60 anos. Enquanto um segue sendo um dos principais pontos de entretenimento, o outro tenta se reerguer depois de quase 13 anos fechado



Não faltam provas de que o Cine Brasília não é um cinema qualquer. O modelo de gestão é raro no Brasil, pois o espaço é de administração pública e tem preocupações mais culturais do que comerciais. Assinado por Oscar Niemeyer, o prédio recebeu a primeira plateia um dia depois da inauguração de Brasília. Enquanto nesse local pulsa cultura, outro símbolo importante da capital segue fechado. O Museu de Arte de Brasília (MAB) carrega o peso de quase 13 anos sem atrações, mostras ou exposições — período que enfrentou abandono e obras.

Uma das riquezas arquitetônicas da cidade, o Cine Brasília foi tombado em 2007 como Bem Cultural do Distrito Federal. O espaço tem a maior sala de exibição cinematográfica do DF, com capacidade para mais de 600 pessoas. “É um lugar que dialoga com toda a proposta estética da cidade. Isso, por si só, já vale a visita, mesmo que seja só para admirar o prédio. Sem contar que, conhecer o Cine Brasília, significa conhecer também um pouco da história das salas de cinema, porque a construção preserva o modelo clássico de uma enorme sala única, diferentemente daqueles que regem o circuito comercial hoje”, detalha Rodrigo Rodrigues, gerente do Cine.

Ele também acredita que o espaço tem importância para cada morador da capital, mesmo aqueles que nunca foram ao local. Isso porque um dos nortes do prédio é a valorização da cultura e da reflexão. “Aqui se exibem produções cinematográficas com inovações estéticas e que abordam temáticas relevantes para a sociedade. Uma das questões que justificam o investimento do Estado nas artes é a capacidade que essas obras têm de gerar um debate na sociedade sobre uma temática específica. Então, mesmo as pessoas que não tiveram contato direto com a obra são beneficiadas pela reflexão gerada por esse filme”, explica.

É por isso também que o lugar incentiva produções nacionais, valoriza filmes realizados na capital e se esforça para ter, sempre que possível, diálogos entre público e equipe de produção da obra. No ano passado, 60% da programação, com cobrança de ingressos, foi dedicada a filmes nacionais. A entrada custa R$ 12, um terço do preço médio de outros cinemas, segundo Rodrigo. Outro motivo de comemoração para o gerente diz respeito ao sucesso do projeto Escola Vai ao Cinema, parceria com a Secretaria de Educação. Em 2019, a iniciativa levou 6.750 estudantes para assistir produções nacionais.





Templo
Um espaço de múltiplas emoções, de aplausos a vaias históricas. O Cine Brasília é tudo isso para Vladimir Carvalho, cineasta de 84 anos que fez do projeto de Oscar Niemeyer mais do que uma casa. “É um templo! A arquitetura favorece isso, o público é único. A história desse lugar é riquíssima”, celebra. O paraibano teve o primeiro contato com o espaço em 1969, quando o curta-metragem A bolandeira foi selecionado para participar do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. “Fiquei encantado, foi um acontecimento marcante na minha vida. Ver um lugar como aquele, dedicado inteiramente ao cinema brasileiro, principalmente ao projeto de mostrar nossa sociedade, foi emblemático”, lembra Vladimir.

Uma das características desse templo que mais chamou atenção do cineasta foi a identidade. “O Cine Brasília mostrava que tinha um compromisso umbilical com a nossa cultura, mergulhando nas nossas raízes regionais. A programação evidencia uma preocupação voltada aos problemas do país. Então, para mim, conhecer Brasília e esse cinema foi especial”, detalha. Prova disso veio pouco tempo depois, em 1971, quando Vladimir virou morador da capital e professor da Universidade de Brasília (UnB). Foi o cinema do DF que ele escolheu para exibir o filme O País de São Saruê, que evidenciava a vida de brasileiros do sertão nordestino e mostrava uma realidade de abandono governamental que as autoridades da época não gostaram de ver.

“O Festival de Cinema de Brasília selecionou esse longa para exibição, mas, dois dias antes, ele acabou sendo retirado violentamente da programação, porque a censura o proibiu. Isso foi bastante negativo para o festival e para o cinema da nossa cidade, porque ali era um evento e um local de referências dessa arte”, lembra.

O filme Brasil bom de bola foi exibido para preencher o espaço da obra de Vladimir na programação, mostrando inclusive cenas do então presidente Médici recebendo a Seleção Brasileira no Palácio do Planalto. O público vaiou a troca e demonstrou apoio ao longa O País de São Saruê, que, pouco tempo depois, chegou a receber convite do Festival de Cannes. “A plateia vaiou as autoridades presentes, os estudantes me apoiaram e perturbaram muito os representantes do poder. Jogaram até bola de gude neles”, ri.

Após o episódio, o principal evento de cinema da capital ficou três anos sem ocorrer. “Chego a ter certo remorso lembrando. Amarguei isso. Mas esse momento foi exemplar para o Cine Brasília e para a minha trajetória. Levei quase uma década para conseguir liberar a obra no departamento de censura. Dez anos depois, consegui apresentá-lo. Onde? No Cine Brasília”, celebra Vladimir.

Estética
Patrimônio cultural da capital, o Cine Brasília é diferente dos outros edifícios. O que predomina não é o concreto, mas sim, as lajinhas em cor de terra, que revestem a fachada externa da estrutura. A arquiteta da Secretaria de Cultura Beatriz Couto Oscar destaca a união entre a modernidade e a funcionalidade. “A forma, por fora, revela a funcionalidade dele como cinema. A plateia em leque, com foco no palco, onde tem a tela. Fora isso, há alguns aspectos particulares de Niemeyer, como a horizontalidade”, ressalta.

A beleza não fica apenas nas linhas do famoso arquiteto. Por dentro, o edifício guarda grandes obras de arte. O espaço é agraciado com um painel de Athos Bulcão e, antigamente, tinha poltronas de Sérgio Rodrigues. “Na última reforma, para o projeto ser aprovado pelo Corpo de Bombeiros, as poltronas não atendiam requisitos, como tempo de queima, de toxicidade. Então, a gestão optou por trocar as poltronas, para que o cinema fosse aberto”, explica Beatriz.

Localizado na 106/107 Sul, o Cine Brasília segue a ideia de unidade de vizinhança ideal trazida para Brasília pelo urbanista Lucio Costa. O objetivo era de que em um mesmo conjunto de quadras, a população tivesse acesso à habitação, ao comércio, à educação, à cultura e ao lazer. Foi morando próximo a essa ideia de vizinhança ideal que o curador Sérgio Moriconi, 63, alimentou ainda mais a paixão por cinema.

Morador da 109 Sul, cresceu brincando pelos pilotis, rodeado de espaços culturais. O Cine Brasília era um dos seus lugares preferidos. “O cinema está na minha memória afetiva desde a infância. Nos anos 1960, eu vinha ver as Chanchadas da Atlântida, que eram um tremendo sucesso de público. Quando fiquei adolescente, continuei vindo”, comenta. O curador destaca que, no Festival de Brasília, que acontece no Cine Brasília desde 1965, ele conheceu grandes filmes e artistas da sétima arte brasileira.

Aquele era apenas o início de uma carreira. Na Escola Parque da 308 Sul, Sérgio fez o primeiro curso na área de cinema. Depois de algumas outras formações, foi para a UnB e embarcou de vez no mundo das telonas. Em 2013, Sérgio assumiu o cargo de programador do Cine Brasília. “Sempre trabalhei com cinema. Todos me conheciam até que me convidaram para vir. O Cine Brasília ficou fechado durante muitos anos. Quando reabriram, precisavam de alguém para fazer a programação e curadoria”, relata. Sérgio ficou no cargo por seis anos.

O então programador também lutava para trazer bons filmes ao Cine Brasília. Sérgio ligava pessoalmente para as distribuidoras em busca de lançamentos. Ele também enviou uma carta para cada embaixada em Brasília, abrindo as portas para exibição de mostras internacionais.

Além da telona
O Cine Brasília é um espaço cultural que abrange ainda mais do que a sétima arte, como acredita Alice Lopes, 24. A tradutora costuma frequentar o local quase mensalmente. “Além da programação normal dos filmes, é um lugar que recebe mostras, orquestras e vários eventos especiais. Sempre tem algo bacana acontecendo, queria frequentar mais por conta disso”, diz. Outro diferencial, de acordo com Alice, é a singularidade do Cine. “Não é um cinema qualquer, é diferente. Hoje, a gente vê quase todas as salas em shoppings, com sessões comerciais. Mas Brasília tem sorte de ter um lugar único, bem ‘raiz’, com filmes bons a um preço acessível”, comenta.

Isabella Silva, 21, concorda. Estudante de letras, ela destaca a escolha do espaço cultural projetado por Niemeyer. “O ambiente dá uma sensação de que estamos em um local especial. É uma área com arquitetura bonita, verde ao redor. Acaba sendo uma experiência visitar o Cine Brasília”, define.

Para os funcionários do local, trabalhar dentro do projeto de Niemeyer é especial. Carlos Antônio Camurça, 54, é projecionista no cinema há cerca de 20 anos. “Trabalhar aqui é enriquecedor. Para quem gosta de cinema, é maravilhoso. Tem uma programação diferenciada. É um privilégio para quem frequenta e para quem trabalha”, destaca.



22 de abril de 1960 primeira sessão

14m x 6,30m tamanho da tela

619 assentos do cinema

52 edições do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro




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