Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 27/01/2020 04:35
Brasília-Valparaíso

Semanalmente um professor de matemática deixava a faculdade acompanhado de uma amiga, professora de português, no fim da manhã, rumo a Valparaíso (GO). O  ônibus, ou era quente porque era seca, ou era quente porque chovia. Para escapar de se molhar, passageiros fechavam a janela e respiravam o ar viciado, por muitos pulmões passados, aguado apenas pela porta traseira que abria em um ruído a cada parada, com um bafo frio.

Faziam o trajeto para dar aulas de português e matemática para crianças de um abrigo no município. E era impossível para os dois amigos saberem o quanto sua história mudaria passados 10, 20 anos daquelas insistentes viagens. Aqueles longos trajetos, se não definissem parte de seu  caráter, ficariam marcados em suas histórias como as bordas carcomidas de um mapa, ou como riscos antigos nas páginas de um livro. Tatuagens impossíveis de ignorar.

As próprias viagens tinham algo de especial. Pegavam um ônibus da Asa Norte para a Rodoviária do Plano e, lá, outro, para Valparaíso. O coletivo seguia pelo Eixo L Sul, coletando, principalmente, estudantes do turno da manhã. Alunos ainda mais comprometidos com o vai e vem diário. Saíam cedo de casa, em Goiás, para assistir às aulas no DF. A mescla de uniformes, colegas, amigos rindo, falando alto, inundavam o veículo de um aroma bucólico.

Era o cheiro de saudade das aulas, provas, trabalhos em grupo e do descompromisso estudantil da infância. Nos dias em que era possível viver  aquele ambiente, o calor ficava. Às vezes, os dois amigos dormiam, liam ou  se engajavam em uma conversa qualquer, que os carregava por metade do caminho até onde o cerrado tomava conta da paisagem.

O abrigo recebia crianças tiradas das próprias famílias pela Justiça. Pequenos Zezés sem seus bondosos pés de laranja lima,  portugas ou baianos, mas sofredores dos mesmos abusos. Então, era investir-se de paciência, ajudá-los nos deveres de casa e submetê-los a exercícios e explicações. Os números eram disciplina dos mais velhos. Dois deles, Diogo* e Bruno*, arrastavam-se entre as primeiras lições de multiplicação, reforçadas por uma série extensa de somas e subtrações. A professora dava as primeiras aulas de alfabetização para os mais novos. Bolava cartazes, cartas com figuras e letras variadas para ajudá-los nos primeiros passos da leitura.

A  dupla foi e voltou de Valparaíso por incontáveis lições, enquanto a vida se encarregava de distorcer os arredores até que o caminho também fosse outro. E eles se viram menos, e menos, e então, nada. Dia desses, o professor de matemática sentou-se no bar e, entre uma cerveja e outra, contou das idas, das aulas e da molecada. Sempre dava tempo de brincar um pouquinho no fim. E o prazer de ensinar tornava os desafios fáceis.

Mas, nesse jardim de lembranças, cresceu uma estranha flor. Dura, espinhosa, resistente, de semente desconhecida. De um olor que não permite que volte a lembrança sem um espeto ou arranhão cheio de perguntas. Por onde andam esses pequenos protagonistas de José Mauro de Vasconcelos? O que aconteceu a esses meninos que se orgulhavam de ir bem nas aulas só para contar da conquista para o professor de reforço? O que terá sido dessas criaturas frágeis como a rosa do Pequeno Príncipe, mas cuja vida não se preocupou em criar uma redoma ou desenhar uma mordaça para os carneiros ao redor?

(*Nomes fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente)


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