Diferentemente do sotaque e de outras manifestações culturais que não são facilmente identificadas no brasiliense, a identidade criada pela obra do artista plástico Athos Bulcão salta aos olhos de quem reconhece Brasília. Parceiro e colaborador de Oscar Niemeyer e João da Gama Filgueiras Lima — dois expoentes da arquitetura brasileira —, Athos tem sua obra presente em diversos monumentos, edifícios e pontos da cidade.
No entanto, há mais de uma década, a burocracia coloca em risco a preservação do legado do artista. Desde 2008, o projeto da construção da nova Fundação Athos Bulcão (Fundathos), responsável pelo acervo de Athos, permanece engavetado.
Em julho de 2009, a pedra fundamental da obra foi inaugurada, com a presença do então governador em exercício, Paulo Octávio. Com a cessão simbólica do terreno, a instituição se instalaria no Setor de Difusão Cultural, próximo ao Centro de Convenções, no Eixo Monumental, em um lote de 1,3 mil m².
Projetada pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, a nova sede funcionaria como espaço cultural multidisciplinar, com galerias para exposições de artes, salas para oficinas, auditório, jardins e café, além de abrigar o Museu Athos Bulcão, dedicado à divulgação da obra do artista. O complexo também serviria como ponto de encontro para artistas, com espaços para espetáculos teatrais, de dança e de música.
Entretanto, mesmo com o terreno prometido pelo Governo do Distrito Federal à instituição, a secretária executiva da Fundathos, Valéria Cabral, lida, constantemente, com processos burocráticos que impedem que o projeto saia do papel. “Há 11 anos, eu luto por isso. Todo ano. Tudo com o dinheiro do nosso trabalho, porque não temos o apoio do governo para manutenção de uma fundação que preserva e divulga o nome de um homem que doou a maior parte da sua vida a essa cidade”, protesta. “O Athos Bulcão é o único artista que dedicou 50 anos da sua vida à capital da República. Falta retribuir ao professor tudo o que ele nos deu. Uma belíssima obra, que é a identidade da nossa cidade”, pontua.
Descaso
O descaso com o patrimônio construído por Athos perdura desde seu falecimento, aos 90 anos, em 2008. No mesmo ano, a Fundathos foi despejada do anexo da Secretaria de Cultura, passando a funcionar em uma sala alugada, na comercial da 208 Norte. Quatro anos depois, em 2014, a instituição se mudou para a 404 Sul, onde permanece até hoje, à espera do terreno prometido pelo GDF.
Entre 2010 e 2016, a Fundathos sofreu com as tramitações do processo para a assinatura definitiva da cessão do terreno. Foram realizados diversos estudos técnicos. Entre eles, análises urbanísticas e da vegetação do local, além de parâmetros de ocupação do solo. Audiências públicas também debateram o assunto, até a aprovação de projeto de lei, pela Câmara Legislativa, que autorizou a construção da sede da Fundação Athos Bulcão.
Em outubro de 2016, com a sanção da Lei nº 5.730, pelo então governador, Rodrigo Rollemberg, foi autorizada a transferência de bens públicos imóveis para entidades privadas. O que abriria os caminhos para a conclusão do imbróglio.
Porém, em março de 2017, uma reunião com os então secretários de Cultura, Guilherme Reis, e de Gestão do Território e Habitação, Thiago Teixeira de Andrade, colocaria mais um obstáculo para a concretização do sonho da entidade. De acordo com a Fundathos, o GDF comunicou que um edital de concessão do terreno deveria ser aberto. Até hoje, a entidade permanece sem um posicionamento do governo sobre a situação. “Estamos esperando e correndo atrás sempre que temos a oportunidade. Agora, aos 60 anos de Brasília, alguém talvez lembre do trabalho do Athos”, desabafa Valéria Cabral.
Procurado, o GDF se limitou a afirmar, em nota, que a Fundação Athos Bulcão é uma entidade privada e que, portanto, a obra não é responsabilidade do governo.
Reconhecimento
Professor aposentado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), José Carlos Córdova Coutinho considera a construção da nova sede da Fundathos fundamental para a preservação da identidade cultural de Brasília e do legado de Athos Bulcão. “Um homem dessa dimensão, que vai ficar na história da cidade, com sua obra associada à do maior arquiteto brasileiro, que foi Oscar Niemeyer, merece reconhecimento. A cidade tem que homenageá-lo, como já homenageou o próprio Niemeyer, Israel Pinheiro, Juscelino, entre outros. Não é mais do que obrigação da cidade materializar esse reconhecimento e transmitir essa figura às gerações seguintes”, defende.
“Embora ele esteja, digamos, imortalizado pela sua obra, a memória é curta. Então, há um esmaecimento da memória entre os que se habituaram a ver essa obra no espaço da cidade como uma coisa comum, como é um poste ou o chão de uma praça. Já transitam com absoluto descaso e indiferença por essas obras, que já incorporaram ao seu cotidiano. Acho que está na hora de imortalizar essa figura e criar um espaço digno para conter essa obra. O governo deveria assumir isso como um compromisso perante a população”, acrescenta Coutinho.
Quem foi Athos Bulcão
Um dos mais consagrados artistas plásticos brasileiros do século 20, Athos Bulcão possui obra vasta. Multifacetado, criou sob as mais diversas expressões artísticas. Desenvolveu obras em pintura, desenho, gravuras, máscara, fotomontagem, além de um celebrado trabalho de integração da arte à arquitetura.
Nascido no Rio de Janeiro, em 2 de julho de 1918, mudou-se para Brasília em 1958. Atuou como parceiro de Oscar Niemeyer e de João Filgueiras Lima, o Lelé, entre outros expoentes da arquitetura. A convite de Darcy Ribeiro, deu aulas de pintura no Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB), de 1963 a 1965.
Traçou a identidade visual, arquitetônica e urbanística de Brasília, por meio de seus painéis, azulejos e relevos, encontrados nos mais diversos monumentos, edifícios e instituições da capital federal. Ao todo, são mais de 200 obras de integração da arte à arquitetura realizadas por Athos, que viveu em Brasília até seu falecimento, em 2008, aos 90 anos, após uma parada cardiorrespiratória. O artista convivia com o mal de Parkinson. No entanto, segurou os pincéis até os últimos dias de vida.
Fique atento
Programação da Fundathos para os 60 anos de Brasília
» Lançamento do Calendário Ilustrado Athos Bulcão 2020, com obras do artista criadas no fim da década de 1950 e começo da década de 1960
» Projeto Atos para Preservar Athos Bulcão, com oficinas, palestras e exposições em alusão aos 60 anos de Brasília
» Parceria entre a Fundathos e o Google, para a plataforma Google Arts & Culture, sobre os 60 anos de Brasília, a partir das obras de Athos e sua relação com a cidade
Pela cidade
Onde encontrar os
trabalhos de Athos
» Palácio da Alvorada
» Congresso Nacional
» Palácio Itamaraty
» Teatro Nacional
» Setor Comercial Sul
» Parque da Cidade
» Quadra residencial 308 sul
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