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Brasília sexagenária: referência internacional, Rede Sarah começou no DF

Rede começou em Brasília, em 1960, como um centro de reabilitação. As atividades aconteciam em um prédio simples, conhecido hoje como Sarinha

Sinônimo de sucesso e boa administração, a rede Sarah é um dos maiores bens que a construção de Brasília trouxe para o país. Em um prédio simples, de dois andares, em 21 de abril de 1960, era inaugurado o Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek. Nessa época, ninguém imaginava a grandeza que a unidade de apoio do projeto de saúde da nova capital viria se tornar. Hoje, atendendo cerca 1,8 milhão de pessoas — segundo levantamento de 2019 — e com nove unidades pelo país, a rede é referência nacional e internacional.

O Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek foi implantado pela então Fundação das Pioneiras Sociais, com o projeto original do arquiteto Glauco Campello. O edifício, atualmente conhecido como Sarinha, hoje faz parte da unidade Sarah Centro, na Asa Sul. “No início, era só uma unidade de apoio. Não havia a intenção na época de transformar em um hospital de referência. Era parte da construção de Brasília”, comenta o arquiteto Haroldo Villar de Queiroz.

Em 1968, Aloysio Campos da Paz Júnior foi convidado para dirigir o centro e aplicar o aprendizado de um treinamento feito em Oxford, na Inglaterra. Em 1969, o centro foi ampliado e passou a funcionar também como hospital cirúrgico, atendendo público de outros estados, além de Brasília. “Na década de 1970, o Aloysio procurou o arquiteto Lelé querendo fazer um hospital maior, de referência na medicina do aparelho locomotor”, relembra Haroldo.

O ortopedista Álvaro Massao Nomura, 69 anos, começou a trabalhar no Sarah na fase dos projetos de Aloysio. Nessa época, ainda médico residente, saiu de Goiás para se especializar em um dos hospitais que prometia ser uma referência nacional. “Em Goiânia, eu sempre dava plantão para ganhar dinheiro extra. Um dos profissionais da clínica foi residente do doutor Paz no Hospital de Base, quando eu falei que fazia ortopedia, ele me aconselhou a ir para o Sarah. Mas ele tinha um interesse. A clínica era de traumatologia, e esse profissional queria que eu viesse aprender e voltasse. Eu vim, fiz e não voltei”, lembra.
 
 
 
Álvaro afirma que chegou ao Sarah na época em que o projetos estavam “borbulhando”. O aprendizado se misturava com as responsabilidades e o crescimento da carreira, baseada na confiança de Campos da Paz com o profissional. “O doutor me deu uma delegação de poder que foi um negócio impossível: a coordenação dos residentes da ortopedia. Ele disse para mim: ‘Álvaro, vai em frente, se encrencar, você me chama’. A gente ia trabalhando no Sarinha e a obra crescendo do outro lado”, lembra. Hoje, Álvaro acumula mais de 40 anos na rede e é vice-presidente da instituição.
 
 

Linha do tempo

1960 - Inauguração do Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek

1968 - Aloysio Campos Paz assume a direção do centro. Início do projeto da rede Sarah

1969 - O centro passa a funcionar também como um hospital cirúrgico, com 66 leitos

1976 - O projeto que prevê o Hospital Sarah é aprovado pela Secretaria de Planejamento da Presidência da República e pelo Ministério da Saúde

1977 - Início da formação da equipe do hospital

1980 - Inauguração do Sarah

1993 - Inauguração do Sarah em São Luís

1994 - Inauguração do Sarah Salvador

1997 - Inauguração do Sarah Belo Horizonte

2001 - Sarah Fortaleza

2005 - Sarah Macapá

2007 - Sarah Belém

2009 - Inauguração do Centro Internacional de Neurociências e Neurorreabilitação, no Rio de Janeiro

Fonte: Rede Sarah

Referência estética

João Filgueiras Lima, conhecido como Lelé, é um dos nomes mais prestigiados da arquitetura moderna do Brasil. Lelé chegou à capital no início da construção e fez parte da história de Brasília ao lado de Oscar Niemeyer. O diálogo do trabalho dos dois era harmonioso, destacando obras com uso de concreto armado.

Um trabalho conjunto

Em 1980, o projeto Sarah foi concretizado e, com uma nova estrutura, projetada pelo arquiteto Lelé, foi inaugurado o Hospital Sarah, em 12 de setembro. Além da funcionalidade, o prédio é agraciado por obras de Athos Bulcão. O arquiteto Haroldo Villar fez parte da equipe e acompanhou de perto o crescimento do hospital. “Aloysio era um médico com um olhar muito amplo e um administrador visionário. Ele tinha essa percepção de realizar uma obra que fosse referencial no Brasil. Eu destaco três pessoas fundamentais para o sucesso do Sarah: o Aloysio, o Lelé na arquitetura, e o Eduardo Kertész, um economista com uma visão avançada”, comenta.

De acordo com Haroldo, o trabalho multidisciplinar na construção desses projetos foi fundamental para a funcionalidade dos espaços. As equipes médicas e os arquitetos trabalhavam em sintonia. Outro ponto de destaque para ele é a boa conservação e a continuidade da equipe que abraça a rede Sarah. “Aloysio comandou o hospital até a morte. Ele cuidava de tudo. Até questões de higiene. Ele não permitia que o chão ficasse 10 minutos sujo, com marca de sapato, não deixava uma lâmpada queimada. Ele tinha esse espírito, de que ali devia ser um lugar de excelência”, ressalta Haroldo.

Uma vida

Um exemplo de continuidade da equipe é a atual presidente da rede, a Dra. Lúcia Willadino Braga. A neurocientista ingressou no Sarah em 1977, quando tinha apenas 19 anos. O objetivo era implementar um tratamento de lesão cerebral usando música. “Quando cheguei com o projeto no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), falaram que eu era muito novinha. Eu fui ao Hospital de Base deixar o projeto, vim aqui, mostrei para o Paz e ele me chamou”, conta.
 
 
 
Andando pelos corredores do Sarinha, ela lembra os primeiros anos, antes da inauguração do novo prédio. “Eu guardava os instrumentos musicais dentro de um ar-condicionado. Para fazer as atividades com as crianças internadas, eu descia elas na cama pela rampa da reabilitação infantil, colocava um tapete no chão e atendia lá fora”, lembra. Assim como o ortopedista Álvaro Massao Nomura, Lúcia acompanhou o crescimento do Sarah e recebeu grandes responsabilidades dentro do hospital. Ela recorda detalhes da nova fase que nascia com a ampliação. “Lembro-me da transferência dos pacientes do Sarinha para o novo prédio. Trazendo o arquivo, varrendo o chão”, relata.

O trabalho era o início de uma carreira vitoriosa. Na rede, ela foi reconhecida internacionalmente pelos tratamentos de lesão cerebral, envolvendo não só a música, mas também a família. Entre as homenagens, o título de doutora honoris causa, pela Universidade de Reims, na França, e o prêmio Distinguished Career Award, da Sociedade Internacional de Neuropsicologia. Em 1994, assumiu a diretoria da rede. “A minha história se mistura com a do Sarah. Eu vim para cá menina e estou aqui até hoje e satisfeita. Trabalhei na abertura das outras unidades, levei pessoas, as formei. Para mim, as unidades são como filhos: criou, tem que cuidar”, destaca. 

Três décadas de atendimento

Os primeiros passos das crianças são sempre motivos de emoção para os pais. Mas poucas caminhadas foram tão comemoradas quanto às de Patrícia Alencar, hoje com 35 anos, após uma cirurgia no Hospital Sarah Kubitschek. Diagnosticada com paralisia cerebral aos 6 meses de idade, ela e a família chegaram a achar que não seria possível a menina ter controle das pernas.
 
 
 
Até os 6 anos, Patrícia só engatinhava. A condição exigia tratamentos complexos e cirurgias que não eram garantia de que ela pudesse andar. “Mas encontrei tudo no Sarah. Desde o começo, sempre me atenderam bem, com amor e carinho em cada palavra e gesto. Isso fez a diferença. Fui recepcionada por médicos excelentes que me acompanharam e mudaram minha vida. Quando comecei a andar por conta de uma cirurgia que fiz lá, vivi um momento que nunca vou esquecer”, detalha.

Patrícia lembrou de todas as barreiras enfrentadas pela dificuldade de locomoção, quando viu o resultado do procedimento médico. “A minha coordenação motora das pernas era muito prejudicada, elas ficavam ‘tortinhas’, porque o tendão não era reto. E a cirurgia era como se eu estivesse arriscando no escuro, porque podia não dar o resultado esperado. Mas, quando consegui andar, foi muito emocionante. Meus pais choraram, eu também. Lembro-me de gritar ‘eu estou andando!’, bem alto”, recorda.
Ela credita o sucesso do procedimento a um conjunto de fatores que, para Patrícia, só o Sarah seria capaz de oferecer. “A estrutura é muito boa, os funcionários são ótimos e sempre tratam a gente com muita atenção. Quem dera todos os hospitais fossem assim. Acho que se eu tivesse me tratado em outro lugar, poderia nem estar mais aqui”, diz.

Amizades

Ao todo, são 32 anos como paciente da Rede Sarah, período em que Patrícia passou por cerca de 10 cirurgias. “Fiz amizades entre as pessoas que trabalhavam lá e entre quem também ficava internado, e vivi muitas fases da minha vida dentro desse hospital”, conta. Na infância, apesar do medo dos exames e das cirurgias, a unidade também foi acolhedora. Hoje em dia, ela convive com algumas dores pontuais e uma certa dificuldade para andar, mas percebe que o quadro nem se compara com aquele de três décadas atrás e afirma que está pronta para qualquer desafio.

“Olho para trás e lembro que nunca usei a deficiência como barreira. O próximo passo é conseguir voltar ao mercado de trabalho, estou entregando currículos para ser recepcionista de novo”, deseja. Patrícia só faz exames anuais na unidade de saúde, rotina bem diferente dos anos em que a visita era quase diária. “Este ano eu vou feliz para lá, os médicos me chamam até de filha. Foi uma luta, mas tive muito apoio. Então, quando olho para trás e vejo tudo o que passei, a sensação é de vitória”, comemora. 

adultos sentados ao lado de crianças
Sarah/Divulgação - adultos sentados ao lado de crianças
Sarah/Divulgação - um prédio visto de cima
ED ALVES/CB/D.A Press - uma mulher e uma senhora em pé
Marcelo Ferreira/CB/D.A Press - dois médicos em pé