Correio Braziliense
postado em 03/02/2020 04:36
Os caminhos dos Pirineus
Estranhos tempos verbais, lembranças e identidades perdidas —o mundo, preso ao pivô da existência fugaz, se mistura bravio. É difícil distinguir entre minutos e séculos em meio às grades escuras, chãos de pedra, chifres de gado, fotografias, armaduras e espadas alegóricas, mouros, cristãos e o mármore branco do planalto. E, a despeito da triste assepsia brasiliense e do correr das horas, o azul, celeste, briga com o vermelho encarnado em uma interminável refrega. Espírito contra matéria, fato versus lembranças, e o tempo a galopar indômito, sempre em frente.
Brasília pode até ser jovem. Mas um viajante interessado que circunde a capital tem, às mãos, desenhos rupestres dos primeiros habitantes do continente e, ainda, os costumes, a culinária, roupas, fantasias e as festas dos povos que surgem como resultado do longo processo de colonização. É como se, de posse do sonho de Dom Bosco, Juscelino Kubitschek parasse para compará-lo com Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, para definir onde construir a nova capital. Uma profecia bem planejada, em nome da gente da região.
É quando chegamos a Pirenópolis, distante 157km de Brasília. Na cidade, fundada no século 18, uma mulher idosa caminha entre os itens do Museu da Cavalhada. Ela recorda o pai, morto há 50 anos, em 1970, os tios paramentados para a festa religiosa, em 1940, e os irmãos vestidos de mouros. Em uma foto, a família sorri ao lado de JK. E, na breve exposição sobre a história familiar e a festa popular, a história faz encontrarem-se o presidente, Carlos Magno, da França, a Península Ibérica tomada pelos povos islâmicos, a celebração da guerra, as tribos ameríndias, o banzo dos africanos e o despojamento determinado dos portugueses, que os levou “para além do bojador”...
Em maio ou abril, é Pentecoste para os católicos. Mascarados caminham pelo centro histórico a brincar com os transeuntes. Usam luvas e disfarçam a voz enquanto gritam fininho: “curucucuuuu”. Uns dizem que são bandos de bobos da corte. Outros, que os disfarçados espantarão os maus espíritos. E, ainda, alguns afirmam que tudo começou com escravos disfarçados para participar da Festa do Divino a despeito das ordens dos senhores. Fato é que a transgressão se perpetuou, e o que era papel de homem, agora, tornou-se brincadeira de todos, independente do gênero.
Feito um dos curucucus, o espião mouro veste máscara de onça feita de papel, cola e tinta, e observa os adversários sob a sombra de uma árvore. É o princípio de uma guerra de conversão religiosa cujo resultado será sempre o mesmo: mouros convertidos ao cristianismo e uma série de gincanas. Gilberto Freyre destaca o liberalismo mal disfarçado do catolicismo brasileiro. As festas que delegam o papel de coadjuvante ao padre, que levam multidões a cavalo de casa em casa, bebendo, comendo, cantando, namorando e espalhando mascarados brincalhões pela cidade confirma a análise.
Brasília, bem ali, misturando brasileiros de todas as regiões, está sentada ao lado das tradições. Tem uma ciranda geográfica ao seu redor, feita de idiomas e religiões, manhosa, voluptuosa, preguiçosa. A cidade pode até ser jovem, mas também guarda esse espírito híbrido, antigo, transgressor. A bagunça que vem do passado é um segredo. Uma voz que, como consta nas primeiras linhas de Raízes do Brasil, sussurra no tempo contra os reacionários e sua estranha concepção de história gloriosa. Nossa glória é a bagunça. Sempre foi.
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