Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 07/02/2020 04:07
Logo que chegou a Brasília, o baiano Renato Matos ficou impressionado com as distâncias da cidade e compôs a clássica Um telefone é muito pouco. Muitos pensavam que se tratava de uma música romântica. Mas para Renato, o problema era geográfico e de mobilidade urbana.

Visitava o Gama para namorar e tinha dificuldade de ir à cidade-satélite. No entanto, a volta era tranquila, pois sempre conseguia carona com deputados e doutores do Plano Piloto: “Um telefone é muito pouco/Pra quem ama como louco/E mora no Plano Piloto/Se a menina que o cara ama/Tá pra lá do Gama, mata de desgosto/E ele fica dentro do pijama/Em cima da cama/comendo biscoito”.

A canção expressa a introspecção a que a espacialidade e o silêncio de Brasília induzem. Renato veio da Bahia para morar com a família de Zilá Reis, mãe do ator Guilherme Reis. Todos saíam para trabalhar, e Renato ficava em casa contemplando a cidade pela janela: “E a televisão com seus programas/Que não têm mais chama pra quem tá afoito/E ele foge para Asa Norte/Tropeçando em ratos/Que saem do esgoto”.

Outra música que se tornou trilha sonora da geração Cabeças é Guará 2. Renato a considera a primeira canção sertaneja de Brasília, embora venha embalada no balanço do reggae. Mas o tom é o lamentoso de dor de cotovelo provocado novamente pela dificuldade de deslocamento em Brasília, que afeta os relacionamentos amorosos: “A menina que eu amo/A menina que eu amei/Me deixou para depois/Porque eu moro no Guará 1/E ela mora no Guará 2/Ela de lá e eu de cá/Jornal não vou aguentar/Ai que frio/Palavras cruzadas não dá”.

Mais recentemente, Renato fez uma bela parceria com o poeta TT Catalão, Solidão celular. É uma pena que TT tenha colocado a música em segundo plano. Solidão celular pode ser considerada quase que uma sequência de Um telefone é muito pouco, mas, agora, em outras circunstâncias. O aparelho que, em tese, promoveria a conexão total é criticado como reduto da solidão e da desumanização. Algumas pessoas costumam ir aos bares e ficar defronte às outras com as maquininhas de digitar, sem mirar o olho do interlocutor.

Em apenas 60 anos, Brasília produziu um acervo respeitável de belas e incisivas canções. E esse é o caso de Solidão celular. No filme Sirig Dum Brasília, Renato erra pelo silêncio espacial de Brasília com a intimidade de quem passeia pela casa, com a voz ecoando: “Ah, ah, esta solidão celular/Ter todos ao alcance e não ter com quem falar/E não ter com quem falar com o coração/Ah, ah, esta solidão celular”.

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