Correio Braziliense
postado em 10/02/2020 04:06
Periferia Brasília
A faxineira e os dois filhos entraram no carro. Pegariam uma carona do Lago Sul até uma estação do metrô, um trem para Ceilândia, por último, um Uber para casa. “Dá pra ir a pé. É uma meia hora. Mas, chovendo e com criança, não dá, né?”, explica. Não é a primeira nem a última mãe a precisar de mais de uma condução para ir para casa no Distrito Federal e região metropolitana. O carro pega a Estrada Parque Dom Bosco e para de semáforo em semáforo. O motorista pergunta para as crianças em que série estão, se gostam de ler, e joga conversa fora com a mãe dos pequenos.
Conversa vai, conversa vem, a mulher, que também trabalha em uma casa na Asa Sul, fala de como Brasília, às vezes, parece fria. As pessoas pouco se visitam, não falam com os vizinhos, etc, etc. Não é de todo verdade? Talvez. Mas, a ela, parece mais verdade que mentira. “Na minha Bahia, a gente vai na casa dos irmãos, vai visitar a mãe, conhece as pessoas da rua, os vizinhos…” O motorista entra na Ponte das Garças enquanto reflete sobre a situação. Seria um daqueles fascinantes casos de formação de um povo? Isso também vale para cidades? Mesmo cidades tão jovens?
Brasília fará 60 anos em abril. Já é uma senhora, diriam alguns. Mas, São Paulo foi fundada em 1554. Em 2054, fará 500 anos. Salvador, primeira capital do Brasil, é alguns anos mais velha. Data de 1549. Pirenópolis, aqui do lado, é de 1727. Luziânia é de 1746. E, para terminar a lista com chave de ouro, Planaltina, do lado de dentro do quadrilátero, é de 1859. Tirando por aí, os 60 anos que nos distanciam da época em que os membros do governo passavam a semana no Planalto Central para, na sexta ou no sábado, voltarem para casa, no Sudeste, é um quase nada. É possível defender que a sensação de despertencimento tenha diminuído muito. Mas, também, que ainda queima fria nos gestos despropositais das primeiras gerações nascidas na cidade.
O carro para no semáforo da L2. A via desaparece em uma curva leve à frente. Mas o motorista faz o retorno. O limpador de para-brisa vai para lá e para cá raspando o vidro molhado. As crianças observam a paisagem. A mulher segue falando. Não percebe quando compara a terra natal, que deixou aos 13, com Ceilândia. Guarda um certo arrependimento. Veio brigada com a mãe. Passou por dificuldades, cresceu, teve dois filhos. Ambos estudam. Do velho arrependimento ela salta para a percepção de que tudo está melhor e que as crianças têm muito mais oportunidades aqui. Ceilândia é um lugar bom de se morar. Ela não conhece tantos vizinhos, pois sai cedo e volta tarde, mas descreve uma liga comunitária mais forte na periferia.
Ceilândia fará 49 anos em 2020. Mas a Comunidade de Erradicação das Invasões (CEI) teve início antes da inauguração de Brasília, para retirar os acampamentos, favelas e comunidades de operários de perto do mármore branco da capital. As invasões foram institucionalizadas, mas nunca acabaram. Aquela gente que veio, principalmente, do Norte e do Nordeste, arriscou em busca de oportunidades melhores. Milhares migraram de pau-de-arara. Mulheres grávidas se submetiam à dura viagem a despeito do risco e do desconforto.
Muita gente dormiu ao relento até aqui. Reproduziu um estilo de vida ainda mais antigo em busca do Venturis Ventis da nova capital. Olhando pra trás, dá pra dizer que havia ao menos uma certeza. Ninguém ali voltaria para casa no fim de semana. Era para ficar. Talvez, Lindonéia Desaparecida esteja certa. Na formação de seu povo há mais permanecer, no meio de tanto estar, que estar no meio de tanto permanecer. No Eixo W, o carro entrou no estacionamento do Mcdonald’s. Chovia cerrado às 20h. A mulher desceu com os filhos e correu para a escada rolante do metrô. O motorista comprou um vinho e foi para casa, perto dali.
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