Correio Braziliense
postado em 11/02/2020 04:18
Fui resolver uma pendência administrativa na W3 Sul e, quando passava por uma loja, uma senhora atarracada olhou para mim de uma maneira estranha. Segui em frente, ela veio atrás e perguntou, com voz firme: “O senhor tem alguns segundos para eu te dizer uma coisa importante?” Tinha pressa, mas, por cortesia, respondi que sim. A senhora fechou os olhos, se concentrou como se fosse receber um pai de santo e esperou alguns segundos, em suspense.
Depois da impressão dramática do silêncio, em tom bíblico, profético, inapelável e inescapável, me fulminou, escandindo quase sílaba por sílaba: “O senhor é pro-fun-da-men-te depressivo”. Senti-me aterrado com a revelação; no entanto, na sequência, ela me disse algo que me ressuscitou: “Mas eu tenho uma boa notícia para o senhor: Jesus te ama”.
Com os olhos radiantes do brilho alucinado dos profetas, ela me observava atenta, aguardando o efeito causado por suas palavras ameaçadoras.
Estava com pressa, um tanto agoniado para chegar ao trabalho, mas, mesmo assim, ainda tive tempo de comentar: “Olha, a senhora só acertou na parte de Jesus. Depressão é algo que passa longe de mim”. Ela ficou um tanto decepcionada com a minha convicção antidepressiva e reduziu o tom apocalíptico, sem dar inteiramente o braço a torcer: “É, mas o senhor me parece um pouco aflito”.
Saí voado para o trabalho. No entanto, gostaria de dizer-lhe algumas palavras. Minha senhora, fiquei muito honrado com a distinção que me conferiu, mas minha verdadeira vocação é a alegria. Entretanto, pensando bem, a senhora não se equivocou inteiramente em suas ponderações. Algumas coisas me deixam em cavo estado de depressão.
É o caso da recente decisão do Congresso Nacional de aumentar o fundo partidário. Trata-se de uma deliberação pornográfica. Depois de toda a luta para o fim do financiamento político das empresas, as suas excelências driblam a proibição e resolvem retirar o dinheiro diretamente do bolso do contribuinte.
Dá profundo desalento constatar que os praticantes de atos suspeitos ainda se permitam o desplante de legislar em causa própria para continuar a fazer bandalheiras com o dinheiro dos nossos impostos. Para mim, as campanhas políticas deveriam ser feitas com as filipetas. Isso evitaria os trambiques. Fico angustiado de constatar que, com a internet, a mentira tornou-se quase que a língua oficial brasileira.
Confesso que, nos últimos tempos, perdi um pouco o senso de humor. Impossível não ficar triste ao ler as notícias. No entanto, se a alegria bater à porta ou roçar o meu corpo, insinuando-se, pode ter a certeza de que me encontrará de braços abertos. Xô, satanás! Xô, depressão!
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