Correio Braziliense
postado em 12/02/2020 06:00
Dormir no chão, pedir esmola e viver dias de sofrimento sem um teto sobre as cabeças. Essa é a realidade de milhares de migrantes que buscam refúgio no Brasil e chegam sem conhecer nada nem ninguém. Dados do último levantamento feito pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública mostram que, em 2019, até novembro, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), recebeu 82,9 mil solicitações de refúgio no Brasil. Ao todo, 870 foram analisadas e, dessas, 160 estão deferidas, sendo 31 para o Distrito Federal.
De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur-Onu), o Brasil tem cerca de 48 mil pessoas reconhecidas como refugiadas pelo Estado brasileiro. A maioria, 37 mil, é de venezuelanos — 749 no DF. O fluxo, é o maior êxodo da história recente da América Latina.
Para quem chega, é preciso lidar com a barreira do idioma, preconceitos e choques culturais. Não foi fácil para Joana Rios, 27 anos. Em 2018, ela e o marido deixaram para trás a Venezuela, família, amigos e um filho de apenas 1 ano. “Passávamos muita fome, se ficássemos lá, seria pior”, recorda. Primeiro, o casal foi para Boa Vista, onde ficaram cinco meses dormindo nas ruas e precisando tomar banho em um rio que passava pela capital de Roraima.
Com a ajuda da Cáritas Brasileira, instituição ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), conseguiram passagem e hospedagem em uma casa de São Sebastião. Em Brasília, Joana tem trabalhado esporadicamente como babá e faxineira, e o esposo é repositor de mercadorias em um mercado. A maior parte do dinheiro que conseguem vai para a família, no país de origem. “Sonho em trazer meu filho para morar comigo. Não o vejo há quase dois anos. Quero conseguir um emprego fixo e seguir adiante com a minha vida.”
Joana passou três meses em uma residência alugada pela Cáritas, com outras quatro famílias. A iniciativa, batizada de “casas de passagem” é uma forma de oferecer o apoio necessário a essas pessoas durante o período de adaptação. Wagner Cesário, assessor nacional para área de migração e refúgio da instituição explica que 10 casas são alugadas por ano. Em cada quarto, eles alocam uma família. No ano passado, 180 migrantes receberam a ajuda no DF.
Além disso, a Cáritas criou a Casa de Direitos, um espaço onde os refugiados recebem orientação jurídica e trabalhista, apoio psicológico e encaminhamento para equipamentos públicos, como hospitais e escolas. “A gente achava que não existia tanta diversidade, mas, à medida que começamos o trabalho, foram surgindo pessoas em busca das atividades na Casa de Direitos”, destaca Wagner.
A venezuelana Lieska Márquez, 40, conheceu Joana na casa de passagem. No país vizinho, ela trabalhava como pedagoga, mas, diante das dificuldades que vivia, ao lado do marido e dos dois filhos, embarcaram rumo a Roraima. “Lá, nós fazíamos barracos de sacolas e papelão. Não havia uma noite em que eu não chorasse. Via meu filho deitado no chão e pensava ‘meu Deus, quando esse sofrimento vai acabar?’ Foi duro”, lamenta.
Em Brasília, ela trabalha como diarista, e o marido é pedreiro. O filho mais velho precisou deixar os estudos em tecnologia de petróleo, para trabalhar e ajudar a família a se sustentar. “Minha sogra tem câncer, meu marido trabalha para mandar dinheiro para ela. Eu cubro o aluguel e também envio o que posso para que eles tenham o que comer. Eu gosto muito daqui. As pessoas nos ajudam e nos recebem de braços abertos.”
O idioma
Para encontrar emprego, um dos maiores obstáculos enfrentados pelos recém-chegados é a língua portuguesa. Para ajudar, universidades desenvolvem projetos de ensino do idioma, com a ajuda de voluntários. O Centro Universitário Iesb criou, em 2017, o Observatório de Direitos Humanos, em que alunos do curso de relações internacionais e voluntários interessados dão aulas gratuitas de português.
A idealizadora, professora Francisca Gallardo, destaca que, até hoje, 170 pessoas, de nove países, foram beneficiadas. As aulas são oferecidas em três unidades diferentes. “Escuto muitas histórias (dos alunos). Eu sou chilena e me sinto identificada com eles”, afirma. O venezuelano Andrés Ferrer, 22, é um dos estudantes. Com a filha Freydimar Ferrer, 1, no colo, ele escuta atento às orientações da professora. “Eu não sabia nada de português, mas, agora, entendo bem melhor. Quero construir a minha vida aqui.”
Um dos professores voluntários, Luiz Cláudio da Silva, 55, explica que se impressiona com a força de vontade dos migrantes e refugiados. “Tenho um aluno de Gana que trabalha com coleta de lixo. Ele sai do trabalho e vai direto para a aula. Não perde um dia. É de um comprometimento sem igual”, elogia. “É maravilhoso poder ajudar um pouco. Vejo aqui uma chance que eu gostaria de ter se fosse eu em outro país.”
A Universidade de Brasília (UnB) tem também o ProAcolher, que ensina português, além de oficinas de cultura, legislação e orientações sobre a prova de proficiência na língua. Idealizado pela professora Lúcia Barbosa, em 2013, ajudou cerca de 2 mil imigrantes e refugiados de 23 países diferentes. “O curso acaba sendo voltado mais para a inserção laboral, que eles necessitam. Chamo isso de agir no mundo e, para isso, precisam da língua-cultura” explica Lúcia.
Ao todo, são três semestres de estudos, cada um com 60 horas de aula. Quem completa ao menos dois, pode levar o certificado na Polícia Federal e conseguir a naturalização brasileira. Ao menos 200 voluntários participaram do ProAcolher. “Sempre me emociona vê-los colocados na vida. Quando vou a um lugar e encontro algum ex-aluno do projeto, eles já se apresentam, lembram-se das aulas e agradecem. É impressionante.”
Amparo
Em Brasília, o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) também acolhe esse público. Segundo a diretora, a irmã Rosita Milesi, são oferecidas bolsas de subsistência em casos de vulnerabilidade, doações de alimentos, e encaminhamento para programas sociais e serviços públicos. Além disso, o instituto auxilia na obtenção de documentos e trabalha na capacitação de jovens e busca por vagas de emprego.
Em 20 anos, o IMDH atendeu a mais de 20 mil pessoas, de 120 países. Irmã Rosita explica que, na chegada, as dificuldades são ilimitadas. “As pessoas necessitam de tudo e do que é mais básico e essencial para se alimentar, estabelecer e recomeçar a organização de sua vida.” Ela garante, no entanto, que os maiores obstáculos, após o primeiro momento, é a obtenção de emprego e moradia. “Os migrantes e refugiados chegam com histórias de sofrimento e perdas, mas carregados também de esperança e de boa vontade para uma presença positiva e construtiva no país que os acolhe.”
Dados
82,9 mil: Número de pedidos de refúgio no Brasil em 2019 (até novembro)
31: Pedidos foram concedidos para o DF em 2019 (até novembro)
48 mil: Número de refugiados no Brasil
Serviço
Casa de Direitos — Cáritas
Local: Conic, edifício Venâncio 2 — salas 101 a 104
Horário de funcionamento: de segunda a quinta-feira, de 9h30 às 12h e de 13h30 às 16h30.
Observatório de Direitos Humanos
Núcleo Bandeirante
Local: CEM Urso Branco
Horários: sábados, de 15h às 17h
Riacho Fundo 1
Local: CED 02
Horários: sábados, de 16h às 18h
Paranoá
Local: Centro de Cultura e Desenvolvimento do Paranoá (CEDEP)
Horário: sábados, de 16h às 18h
ProAcolher
Local: Universidade de Brasília - Campus Darcy Ribeiro (Asa Norte)
Horário: segundas, quartas e quintas-feiras, de 19h às 21h
e-mail: proacolher.unb@gmail.com
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