Cidades

Crônica da Cidade

Sonho recorrente

Correio Braziliense
postado em 15/02/2020 04:15
Quando eu era criança, meu pai passou a me levar todos os fins de semana para jogar futebol em um time que ele apoiava em Sobradinho. Criado à base de Toddynho no conforto do Lago Norte, passei a conviver com alguns meninos humildes que sabiam o quanto a vida em um país como o Brasil pode ser dura. Vencer uma partida, para aqueles garotos, era muitas vezes o único momento bom da semana, o que os fazia jogar com uma garra que eu desconhecia.

Por isso, com o tempo, deixei de me preocupar em ser um bom jogador e passei a me esforçar ao máximo para não ser uma pedra no sapato de meus companheiros. O que eu mais temia era ser visto como um estorvo que estava ali só porque meu pai era o empresário que pagava o uniforme e os kichutes. Mas foi justamente o que aconteceu, especialmente depois de eu perder o gol da vitória aos 45 do segundo tempo de uma importante partida.

Nós éramos o Brasília e jogávamos contra o Sobradinho. A partida estava dura, e o placar de 0 x 0 tinha até gosto de vitória para nós, dada à pressão enorme que o Sobradinho fazia. No finzinho do jogo, num ataque de nosso time, começou um bate-rebate na área até que a bola começou a cruzar a área, diante do gol sem goleiro, quicando lentamente. Lembro claramente da bola vindo em minha direção, mas alta demais para que eu a acertasse com a perna e baixa demais para cabeceá-la. Minha única alternativa era empurrá-la com a barriga e foi o que fiz. Mas a bola acabou indo para fora.

Acho que qualquer outro em meu lugar, tendo a altura que eu tinha à época — cerca de 1 metro e 30 —, também falharia. Mas dada à impaciência acumulada dos garotos comigo, o time explodiu. E pela primeira vez alguém disse ao técnico o que muitos pensavam: "Seu Marinalvo, em jogo grande o Beto não pode entrar". Ouvi quieto, porque no fundo concordava. E foi nesse dia que passei a ter pesadelos recorrentes com futebol.

É verdade. Vira e mexe, sonho que estou em uma partida de futebol e não consigo fazer o gol. Às vezes, falta força na perna. Outras, uma pedra no campo desvia a bola pouco antes de ela entrar. Ou, então, um ser sobrenatural surge do nada e impede que eu marque. Com o tempo, comecei a perceber que esse sonho volta quando me sinto frustrado ou incapaz de alcançar algo que desejo muito. E ele voltou no início desta semana, mas com um final surpreendente.

No início, foi um sonho parecido aos outros. Estou no campo, tento marcar o gol e algo dá errado. Desta vez, porém, o goleiro, ao perceber minha dificuldade, resolve me desafiar e sai da área com a bola, certo de que sou incapaz de tomar a bola dele. Digo para mim mesmo que o excesso de autoconfiança dele será minha vantagem e parto determinado a roubar-lhe a bola. E consigo! Na disputa, a bola se afasta e passa a ir em direção ao gol. Eu e ele corremos lado a lado. O primeiro a chegar até a bola vencerá. Tiro forças que não sabia que tinha e chego primeiro. Chuto a bola em direção ao gol livre e... acordo, sendo capaz de ainda sentir minha perna chutando o lençol. Abro os olhos e sorrio. Sinto otimismo e uma sensação de que algo mudou em mim. Passei o resto da semana me sentindo mais confiante. O que mudou? Não sei ainda, embora o sonho seja a prova de que já sei, sim.
 

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