Cidades

"Daqui não passa"

Correio Braziliense
postado em 16/02/2020 04:06
A última obra  de José  João no Correio:  a construção do parque gráfico, no fim dos anos 1990 . Voltar ao mesmo lugar o fez reviver tudo

As lembranças povoam a cabeça lúcida de José João. Ele se lembra de uma visita que Juscelino Kubitschek fez com as filhas à obra. “Era muito distinto. Muito educado. Presidente como Juscelino nunca mais vai ter.” E lembra que, aos domingos, na sua rápida folga, ia caçar pelo cerrado sem-fim do Planalto Central. “Era o que tinha pra gente fazer”, conta. E reflete, ainda com os olhos umedecidos: “Era chuva dia e noite, frio, geada, sofrimento e amor, tudo junto. Foi uma afronta fazer isso daquele jeito. Mas eu nunca pensei em desistir.”

Atento a tudo e preocupado com a segurança da obra, José João era rigoroso. Numa dessas vezes, faltando um pouco mais de mês para o prazo acabar, 21 de abril, Assis Chateaubriand veio ver de perto a construção do seu jornal. Ao chegar, já em cadeira de rodas, o segurança quis levar o patrão até uma das áreas ainda inacabada, cheia de estacas. “Eu disse: ‘Não vai passar. Aqui, não. Pela segurança dele. Vai que uma estaca dessa cai na cabeça dele’. O segurança voltou de onde eu tinha parado.” Hoje, 60 anos depois, o mestre de obras contou, ainda certo da decisão: “Eu disse: ‘O jornal é dele, mas a obra é minha’. O segurança não passou com o doutor Assis”.

Depois da inauguração do Correio Braziliense e da TV Brasília, o acampamento foi desfeito. Operários procuraram outras obras na cidade que começava. Brasília era um canteiro de obras por toda parte. Era barro vermelho e construção. José João ficou. Morou 15 anos num barraco de tábua dentro do próprio jornal. Ali, trouxe a sua mulher, Maria José, com quem havia se casado ainda em Belo Horizonte, antes mesmo de vir para a saga da construção das obras dos Diários Associados. E adotou Marcos, no dia em que nasceu, o único filho que teve. “Ele nasceu no Hospital de Base. Trouxemos o Marcos pra casa no mesmo dia.”

Ali, dentro da própria sede do jornal, José João morou mais 14 anos. Desta vez, numa espécie de apartamento com dois quartos, no prédio original, onde hoje é parte do refeitório dos funcionários dos serviços gerais. “Foram 29 anos ali dentro. Todas as minhas lembranças tão lá”, diz, olhando para fotos antigas dentro de um álbum que ele guarda como seu melhor tesouro.


De volta ao começo

Na última quarta-feira, José João retornou ao lugar onde começou, há 60 anos toda a sua história na terra de JK. Dirigindo o seu próprio carrro, uma Hyundai Tucson, com direção hidráulica, e chegou à sede do prédio principal às 10h. O mestre de obras, que estudou só até o quarto ano primário, foi saudado, por um velho companheiro de trabalho, como “engenheiro”. Amilton Alves de Souza, de 73 anos, que chegou anos depois da inauguração do jornal, ainda foi subordinado a José João. Auxiliar de serviços gerais, o abraço dos dois comoveu quem viu. “Ele é um filho pra mim. É como se eu estivesse reencontrando um filho que deixei de ver por muito tempo.”

O baiano Amilton — que nunca foi chamado de Amilton, mas de Dodô, apelido de infância ainda na Bahia — escutou o mineiro José João falar. Emocionou-se como filho ouve pai falar. “Ele faz muita falta aqui. Foi um chefe muito humano. Sabia ouvir a gente”, conta, sem disfarçar os olhos marejados. Os dois cochicharam como meninos de escola. “Meu Deus, Dodô, eu nem pensei que você ainda estivesse trabalhando por aqui. E vivo”, brincou o “engenheiro”, que foi eleito pelo homem que conserta vazamentos dos banheiros do jornal. Dodô devolveu: “Tô vivinho, vivinho”. José João diz que, agora, os dois nunca mais vão se perder. Trocam telefones: “Você vai comer galinha caipira lá na minha terrinha, lá no Girassol”. Dodô agradeceu: “Sim, é bem pertinho da minha casa. Moro em Águas Lindas”. E se abraçaram mais uma vez.

E a “excursão” pelo lugar que conhece melhor do que todos que estão nele agora não parou. Foi recebido por diretores da empresa, no terceiro andar. Ganhou presentes. Esteve na redação. Foi abraçado por todos que viu pelo caminho. Havia deferência em cada gesto. Das salas dos homens de terno, José João foi ao começo de tudo. Parte do que foi sua casa por 14 anos, sua última casa, hoje é refeitório dos funcionários da limpeza. Ali foi outra festa, mesmo que ninguém o conhecesse, exceto Dodô, que o acompanhou por toda a visita. Ali, exatamente ali, a comida da sua Maria José exalava. De repente, no hoje depósito de papel, ele parou e disse, como se visse nitidamente um retrato à sua frente: “Aqui tinha um pé de laranja e outro de limão”.


A última missão

Depois de morar por quase três décadas dentro do próprio Correio, José João foi para o Cruzeiro Velho, sua primeira casa de verdade. Casa grande, com jardim bem cuidado pela sua Maria José, que morreu há três anos. E seguiu trabalhando no jornal, agora como encarregado-geral, para sua última missão: a construção do parque gráfico.

E foi lá, no fim da manhã da última quarta-feira, a última parada no passeio de volta. José João comandou toda a construção do lugar. Conheceu alguns funcionários. Desceu gente até do Marketing Digital para conhecê-lo. Daniela Soraia Brito, de 34 anos, e Akemi Akaoka, 31, emocionaram-se ao vê-lo de perto. “É uma honra saber dessas histórias”, disse Daniela.

Há mais de 10 anos, José João vendeu a casa no Cruzeiro Velho e foi morar no Riacho Fundo. Sua Maria José, a mulher com quem viveu por mais de 60 anos, morreu há três. “No fim da vida, ela nem sabia mais quem eu era. Me chamava de pai. Morreu nos meus braços”, contou, chorando. Há cinco meses, perdeu também o único filho, Marcos, aos 52 anos. “Ele teve complicações do diabetes.”

Católico, devoto de Nossa Senhora, José João ficou sozinho. Veio a solidão. Uma antiga conhecida, ministra da eucaristia, passou a conversar com ele. Passaram a ir juntos à igreja. Na carência de ambos, veio o amor. José João casou-se, há dois anos, com a piauiense Rita Maria da Conceição, 61, separada, seis filhos adultos e 13 netos. “De repente, minha vida ganhou sentido”, disse ele. “Eu enfrentei, no ano passado, um câncer de estômago. Ele me acompanhou a todas as consultas, na cirurgia e durante o tratamento. É o meu companheiro”, emocionou-se ela.  Ele a abraçou. Diabético (toma três insulinas por dia), ela cuida com extremo zelo da alimentação dele. Um cuida do outro. Um protege o outro. Moram sozinhos, no Riacho Fundo. “Ganhei filhos e netos. No almoço do domingo, a casa fica cheia”, comemorou.

“Viver mais dez anos”

No fim da visita, depois de todos os abraços, de voltar aos lugares, de sentir cheiros que ainda permanecem na sua memória, José João disse, segurando o braço de Rita Maria: “Agora, eu posso morrer. E morro feliz”. Rita o repreendeu: “Não diga isso, meu amor. Morrer, não. Agora, você vai viver ainda mais”. José João riu. E refez a frase: “A felicidade que tô agora, depois  dessa visita, vai me fazer viver mais 10 anos”.

Hoje, aos “85 anos e meio”, o mineirinho que chegou aqui quando só havia mato, veados, onças e seriemas, conta a história da sua vida como se contasse um filme. Um filme bom. José João desmatou, desbravou, caçou aos domingos, quando nada havia. Ergueu paredes, liderou um monte de gente que veio de longe, como ele. Uma gente que deixou família e trouxe, além de uma trouxa de roupa, muita saudade.

José João escreveu, mesmo que nem soubesse exatamente àquela época, a história de um jornal e da própria capital que se iniciava. O único jornal no mundo que nasceu no mesmo dia do nascimento de uma cidade. José João estava aqui. Viu tudo. Foi à Esplanada, segurando seu chapéu surrado. Não ficou em camarote. Não recebeu homenagens. Juntou-se aos milhares de peões de obra que se acotovelaram para ver a cidade nascer. Tudo era um assombro.

Naquele distante 21 de abril de 1960, José João ganhou, como presente dos peões, uma cachaça. Guarda até hoje, sem abrir, intacta, como prova de uma saga. Com a sua quarta série primária, ele leu, ainda naquele dia, a primeira manchete do jornal no qual deixou o seu suor impregnado. Sentiu-se importante. Era parte, também, da sua própria história. E lá estava escrito: “Brasil, capital Brasília.”


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