Cidades

Reconhecimento facial será utilizado pela primeira vez no carnaval

Para conter o aumento da insegurança durante os dias de festa, a Secretaria de Segurança Pública divulgou na semana passada o uso da tecnologia

O Governo do Distrito Federal (GDF) vai usar reconhecimento facial automatizado para aumentar a segurança do carnaval de Brasília. A medida foi anunciada na semana passada, junto com outras estratégias de segurança pública, como a utilização de drones para monitoramento de multidões e o empenho de 700 policiais militares extras, além do efetivo já planejado para as festividades.
 
O reconhecimento facial vai servir para identificar pessoas com mandados de prisão em aberto, entre outras implicações legais, no meio da multidão. Uma vez que o suspeito seja identificado, a polícia pode tomar providências a partir da sua central de monitoramento para o carnaval: a Cidade da Segurança Pública, localizada na Torre de TV.
 
O uso de reconhecimento facial em grandes eventos está cada vez mais comum. A primeira cidade a testar a tecnologia foi Salvador, seguida por Rio de Janeiro. Esse ano, além de Brasília, São Paulo também anunciou que vai adotar este método. A capital já usa reconhecimento facial automatizado em toda a frota de ônibus desde maio de 2019. O sistema serve para coibir o uso irregular dos cartões de passe livre estudantil e funciona por câmeras de biometria facial, que gravam características específicas do rosto de cada pessoa.
 

Polêmicas

 
Apesar das aparentes vantagens, o uso do reconhecimento facial não é uma unanimidade. Ativistas e acadêmicos questionam a precisão do uso dessa tecnologia, além da falta de transparência dos governos sobre como os dados coletados são usados e armazenados. Em julho de 2019, a agência regulatória de tecnologia dos Estados Unidos, o NIST, testou um software de reconhecimento facial usado pelas polícias da França, Austrália e Estados Unidos.
 
O programa, desenvolvido pela empresa francesa Idemia, tinha uma base de dados de milhões de fotografias, e era usado para monitorar grandes multidões em busca de possíveis foragidos. O teste do NIST mostrou que o algoritmo usado tinha mais chances de confundir pessoas negras e asiáticas que pessoas brancas. A chance de erro entre as mulheres foi maior: negras foram confundidas dez vezes mais que as brancas.
 
Os possíveis erros do reconhecimento não são o único problema. Alcides dos Reis, pesquisador de pós-doutorado (Fapesp) no Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e desenvolvedor de estudos na área de vigilância, explica que o reconhecimento facial não pode ser tratado como uma informação pública, simplemente. "Uma imagem coletada numa via pública não é um problema, mas seu processamento é, porque não é somente minha imagem, mas coletaram meu rosto e isto está sendo submetido a algoritmos extremamente rápidos", argumenta Reis.
 
"Eles coletam características únicas, como as distâncias do meu rosto. Fazem um mapeamento que permite uma identificação da minha face. No caso do carnaval, eles não têm uma amostra prévia minha, mas há um processamento da imagem sem autorização", explica o sociólogo. O pesquisador comenta ainda que é preciso observar a legalidade desse instrumento na legislação brasileira.
 

LGPD

 
 A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que protege os direitos fundamentais de liberdade e privacidade e entra em vigor em agosto desse ano, não invalida o uso de reconhecimento facial como medida de segurança, contudo a interpretação desta legislação pode revogar a ferramenta. De acordo com Rodrigo Gomes, coordenador de direito e tecnologia da Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ, a lei não se aplica nos casos de tratamento dos dados para fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional ou nas atividades de investigação e repressão de infrações penais.
 
Assim, dependemos de uma nova lei que deverá, necessariamente, levar em conta os princípios de privacidade da LGPD e criar um órgão específico para fiscalizar seu cumprimento. “A privacidade é um direito constitucional, então o uso do reconhecimento facial tem que seguir esse preceito. O que acontece é que o mundo inteiro pede mais transparência para a forma como essas tecnologias são usadas”, destaca Gomes.
 
Para o professor Flávio Vidal, do Departamento de Ciência de Computação da Universidade de Brasília (UnB), a utilização de câmeras para monitoramento facial traz mais segurança, em especial, no carnaval. Segundo Vidal, os erros do programa são contornáveis e a tecnologia está melhorando com o tempo. "O reconhecimento facial ajuda muito nos casos em que um suspeito nega ser o autor do crime. Quando isto acontece, entra o reconhecimento facial. Com as imagens colhidas, o oficial resolve o problema. Não deixa de prender alguém por falta de provas, evita o falso-negativo", aponta o professor.

Para ele, a tecnologia já está pronta para uso desde, pelo menos, 2010. “O trabalho do professor Mubarak Fhah, diretor do Center for Research in Computer Vision, por exemplo, é capaz de identificar com acerto de 80% um grupo de 1 milhão de pessoas. Esse nível de acerto não é desprezível”, comenta. O professor diz, ainda, que a acusação de viés de racismo precisa ser melhor fundamentada, já que a criação das bases de dados e implementação das tecnologias quase sempre é acompanhada por uma comissão de ética rigorosa.

Transparência


O que todos os especialistas concordam é que é preciso transparência na utilização do reconhecimento facial automatizado. "Para que haja uma discussão mais aberta é necessário todos os detalhes para entendermos essa tecnologia. Esse recolhimento de informações não pode acontecer sem controle. É preciso saber os detalhes. Sabemos que é a polícia que fará este trabalho, mas com ajuda de uma empresa privada. Qual empresa estará cuidando das informações? Os dados serão apagados após o uso? Quais as tecnologias usadas? Como o governo protege essas informações? São várias as perguntas", questiona Reis. 
 
O Correio pediu para o Centro Integrado de Operações de Brasília (CIOB), da SSP/DF, informações sobre o sistema de reconhecimento que será implantado no Distrito Federal, mas até o fechamento desta matéria não obteve resposta.
 

Como funciona o reconhecimento facial

1. O software de reconhecimento facial lê a geometria da face de uma foto ou vídeo e cria um código único para cada pessoa, ou ‘impressão facial’;
2. Impressões faciais são comparadas com uma lista prévia e um computador classifica as possíveis combinações;
3. Quanto mais se usa a tecnologia mais informações ela pode gerar, devido ao processamento dos dados. A fase de processamento pode ser definida como coleta e manipulação de dados para produzir informações significativas. Essa é parte que poderia colocar em risco a privacidade dos cidadãos. 


Outros casos

China
Uma pesquisa de dezembro de 2019 do Nandu Personal Information Protection Research Centre, empresa chinesa de pesquisa, mostrou que os moradores de Pequim estão preocupados com o aumento do uso de reconhecimento facial no país. A principal preocupações dos chineses é com o vazamento ou hackeamento dos dados biométricos secretos.

Reconhecimento facial nas igrejas evangélicas
Em novembro do ano passado, na Expo Cristã, uma feira de empreededorismo cristão, uma empresa chamada Kuzzma ofereceu serviços de reconhecimento facial voltados para a comunidade evangélica. A empresa garatiu ser capaz de oferecer aos pastores informações como a frequência que fiéis vão ao culto, a hora em que os fiéis chegam às igrejas e até prováveis motivos do não comparecimento eventual, além de informações como nome, gênero e idade.

Metrô de São Paulo
Seis instituições protocolaram, em 10/02, uma ação judicial para cobrar informações do Metrô de São Paulo sobre a implementação de um sistema de câmeras com reconhecimento facial. As defensorias públicas e organizações da sociedade civil que assinaram o documento querem saber como serão coletados e tratados os dados biométricos dos passageiros captados por câmeras de reconhecimento facial.
 

 
*Estagiários sob supervisão de Adson Boaventura