Cidades

Duas mortes por R$ 40,00

Dois menores pobres de Santa Maria que participaram do assassinato dos estudantes da UDF confessaram à polícia que receberam para cometer o crime

Esta matéria foi publicada originalmente na edição de 6 de março de 1998 do Correio. Sua republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram

Duas vidas que se foram em troca de apenas R$ 40,00. Foi o que os dois menores, conhecidos como E.T. e Galileu, ganharam para participar do assassinato do casal de universitários, Gabriela Adler e Flávio Martins de Carvalho. Para os dois adolescentes de famílias pobres de Santa Maria a oferta era bastante atrativa. Ajudar Carlos Roberto Rodrigues, 21 anos, o Galego, a cometer mais um assalto em troca de alguns reais. Segundo o depoimento deles à polícia, E.T., de 15 anos, recebeu R$ 10,00. Galileu, de 16 anos, ganhou mais, pois além de ajudar no assalto, deu os dois tiros que mataram Flávio.

 

Os dois menores foram presos na quarta-feira em Santa Maria. Carlos Rodrigues, conhecido como Galego, já estava preso desde domingo em Luziânia. Na última sexta-feira, à noite, eles seqüestraram Gabriela, de 22 anos, e Flávio, de 25 anos, no estacionamento da Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal.

 

Galego rendeu os estudantes que conversavam no Fiat Tipo da moça. Assumiu a direção do veículo, enquanto os outros dois menores roubaram o Ômega de Flávio. Seguiram rumo à Saída Sul e numa estrada de chão perto de Luziânia executaram o casal. Depois incendiaram o Tipo com os dois corpos dentro. A polícia conseguiu chegar até eles, porque cometeram outro assalto em seguida semelhante no Novo Gama e acabaram deixando pistas.

 

Ontem, na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), E.T e Galileu admitiram a participação no assalto e na morte do casal de universitários, sem demonstrar arrependimento algum. Segundo um policial que acompanhou os depoimentos e pediu para não se identificar, os dois adolescentes responderam às perguntas de forma indiferente. “Parece que eles não têm noção do crime bárbaro que cometeram”, comentou.

 

E.T, em seu depoimento, afirma que quem matou o casal foram Galileu e Carlos Rodrigues. Ele conta que apenas ajudou no assalto e a incendiar o Fiat Tipo de Gabriela, com os corpos dela e de Flávio. “Não atirei nos dois. Ajudei a colocar apenas fogo no carro”, contou. Seu comparsa confirmou a história, confessando que ficou a seu cargo matar o rapaz e que a moça foi assassinada por Galego.

 

Os detalhes são cruéis. Os garotos contaram que Gabriela chorava muito e que viu o ex-namorado sendo morto com dois tiros por Galileu. Depois Galego teria tomado conta da situação. Primeiro esmurrou o rosto da moça para após matá-la com três tiros. Galileu ainda lembra que antes de matar Flávio, ele se ajoelhou e pediu para que não o matassem pelo amor de Deus. “Galego já tinha dito que os dois teriam de morrer. Por isso atirei no cara”, declarou.

 

Nos depoimentos os garotos jogam a responsabilidade pelo comando do crime em Galego. Os dois afirmaram que não atearam fogo no Tipo sozinhos como afirmou o terceiro criminoso em depoimento na delegacia de Santa Maria. Eles garantiram que Galego estava junto. Os menores também negaram que estavam sob efeito de drogas.

 

Mãe acusa más companhias

 

E.T, de 15 anos e Galileu, de 16, prestaram separadamente depoimentos ontem na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), que duraram mais de duas horas cada um. O primeiro a chegar à delegacia e ser ouvido foi C.P.S., de 15 anos, o E.T. Ele chegou às 4h00 da madrugada, acompanhado da mãe, Zumira, de 44 anos e da irmã mais velha, de 19 anos. O garoto só começou a ser ouvido às 09h00 da manhã. Todo o seu depoimento foi acompanhado pela mãe que muito abalada não conseguia acreditar nas palavras do próprio filho. “Não vou dizer que meu filho é santo. Mas se ele fez o que estão dizendo, por por causa das más companhias”, desabafou.

 

 

 

Na delegacia de Santa Maria, os menores chegaram a dar depoimentos também. E.T não conseguiu explicar o que aconteceu depois do crime. De acordo com sua versão, ele se separou do grupo logo depois de incendiarem o carro, utilizando a própria gasolina do veículo. Voltou para sua casa em Santa Maria e foi dormir. J.R.S., de 16 anos, o Galileu confirma a história. E acrescentou que depois ele e Galego teriam encontrado outros dois menores, ainda não identificados, e juntos foram até Luziânia no Ômega roubado do universitário Flávio Martins, uma das vítimas.

 

Lá realizaram o primeiro saque num caixa eletrônico com o cartão do estudante. Depois só restaram respostas vagas. Os dois menores afirmaram desconhecer o destino do carro e não sabem explicar os outros saques que foram feitos.

 

Galileu rebateu em seu depoimento a versão do Galego de que ele teria sido o mandante do crime. Segundo um policial, o rapaz “já é escolado”, foi interno do Caje por tentativa de homicídio, por isso jogou a culpa no adulto. Este sim teria determinado que o casal deveria morrer, segundo o garoto.

 

Ontem mesmo, os dois adolescentes foram levados à promotoria da Vara da Infância e da Juventude que pediu a internação provisória deles no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje). De acordo com a delegada da DCA, Suzana Machado, os menores ficarão internados no centro no máximo por três anos como prevê o Estatuto da Criança. “Independente do crime que cometeram, os menores de idade, o tempo de internação não pode superar esse período. Em sua opinião, a miséria e a desestruturação familiar levam a crimes desse tipo. “Apesar de toda a experiência que tenho na polícia, ainda fico chocada com crimes bárbaros como esse”, comentou.

 

O menino feio e mirrado que mata adultos


O apelido E.T ele ganhou por causa da magreza. A mãe tentou segurá-lo em casa mas tudo mudou quando conheceu os novos amigos “barra pesada”

 

Ele mede 1,57 metro e pesa 38 quilos. Cabelos bem ralos e profundas olheiras. Tem cara e voz de menino, jeito de criança dewsnutrida e desprotegida. Só jeito. Age como adulto e ajuda a matar adultos. Só não apertou o gatilho, mas tocou fogo nos corpos — como admitiu, formalmente, em depoimento à Delegacia da Criança e do Adolescente.

 

C.P.S., de 15 anos, é assim. À primeira vista, parece um adolescente como outro qualquer. Poderia ser. Pai pedreiro e mãe dona de casa, teve uma vida humilde. Como humilde é toda a vizinhança que o cerca. Numa casa modesta na QR 203, em Santa Maria, vivia com os pais e cinco irmãos.

 

Desde pequeno, foi apelidado de E.T. (Extraterrestre). O codinome veio por causa do baixo peso — e como comentam os vizinhos — “pelo jeito feio e esquisito que tinha”. E assim cresceu. Aparentemente sem traumas pela feiúra e pela magreza. Não se importava com o apelido. Pelo contrário. Tirava proveito dele. E.T impunha respeito, mesmo com o físico esquálido.

 

Nunca foi amante dos estudos. Abandonou a escola na quarta série. A mãe, Zumira, de 44 anos, ficou chateada. Semi-analfabeta, o sonho era ver um dos filhos “com diploma”. Difícil realizar o sonho, principalmente se depender de E.T. “Ele dizia que não precisava de estudo para se dar bem na vida”, conta uma vizinha.

 

Desde pequeno, E.T. começou a dar trabalho. Brigava na rua e sumia vez por outra. Zumira se desesperava. Foram noites e dias de preocupação com o filho mirrado. Por diversas ocasiões, ela chegou a comentar com a vizinhança que tinha medo de que algo pudesse acontecer com ele. Parecia pressentimento.

 

Apelou para castigo, para promessa. Nada. “Como é que se prende menino homem dentro de casa”, perguntava-se. Virou evangélica da Igreja Batista. Levou E.T.Ele até se converteu. Mas não durou muito tempo. Foi quando conhecer os amigos “barra pesada”. A vida de Zumira virava do avesso.

 

Culpa dos amigos

 

Na manhã de terça-feira, quando investigadores da 33ª DP (Santa Maria) foram à casa de E.T. e contaram para Zumira que seu filho estava envolvido na morte dos estudantes Gabriela Adler, de 22 anos, e Flávio Martins de Carvalho, 24 — executados e queimados na noite de sexta-feira — ela não acreditou.

 

E.T. não estava em casa. Na quarta-feira, por volta das 16h, os policiais voltaram a sua residência. Chegaram a tempo, Zumira levava o filho para a casa de um parente em Santo Antônio do Descoberto. Jura que não iria escondê-lo.

 

O menino fraquinho, com jeito de criança, sai algemado. Zumira se descontrola. Não acredita no que vê, tampouco com o que dizem do seu filho. “Oh, gente, ele é tão pequenininho e fraquinho, que não vejo como pode ter feito mal a alguém”, lamentou na DCA, ontem pela manhã. Depois, como se admitisse e quisesse diminuir a culpa do filho, garante: “Meu filho não é um santo, mas se fez o que fez foi por causa das más companhias”>

 

Carroceiro

 

Amigo de E.T., J.R.S., de 16 anos — conhecido como Galileu — também participou da noite de horror em que Gabriela e Flávio foram mortos. Ao contrário do colega, não jogou gasolina nos corpos dos estudantes.

 

Preferiu matar, impiedosamente, o rapaz. Nem o pedido de clemência de Flávio: “Por favor, não me mate, leve tudo o que você quiser, eu tenho dinheiro” (foi segundo o próprio adolescente o que Flávio teria dito antes de morrer) compadeceu o garoto.

 

Ele estava decidido. E assim o fez. Depois, ordenou para que Carlos Rodrigues de Souza, 21 anos, conhecido como Galego — que também participou da barbárie — executasse Gabriela. “Atira, atira, se não vou atirar no seu pé”, teria ordenado Galileu a Galego. Ele obedeceu.

 

Ex-interno do Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) por duas vezes (primeira por homicídio e a segunda por furto de veículo, de onde saiu em dezembro) — Galileu sempre deu trabalho em casa. Deixou a escola na 4ª série e quis trabalhar. Bebia e era comum ficar embriagado.

 

Arrumou uma carroça e um cavalo e virou carroceiro. Recolhia garrafas e catava papel nas ruas de Santa Maria. Além disso, seu hobby era, segundo a vizinhança, roubar cavalos em Santa Maria e vender no Novo Gama.

 

Na noite de sexta-feira, quis ganhar dinheiro. Muito dinheiro. Não saiu com nada. Gabriela e Flávio pediram para não morrer. E.T, Galileu e Galego não tiveram pena.

 

Polícia procura mais um

 

Pelo menos mais um menor pode estar envolvido no assassinato dos dois estudantes da Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF). Seria o menor conhecido como Berg, 16 anos, que também morava em Santa Maria. Ele está desaparecido desde a manhã do último domingo.

 

“Nunca achei que meu filho fosse marginal”, disse o pai. Antônio Souza Nascimento, 60 anos, que possui uma banca de loterias e jogo do bicho, chorando muito. “Ele sempre teve tudo. Nunca encostei um dedo no moleque”.

 

Segundo amigos do menor, ele teria sido apanhado na sua casa na última sexta-feira por Galileu e participado do assassinato dos estudantes. Coincidentemente, Berg mora em frente da casa de Carlos Rodrigues de Souza e, segundo vizinhos, costumava sair com a turma do menor Galileu.

 

 

 

A polícia já foi até a casa do menor pelo menos duas vezes a procura do garoto. “Um policial que se apresentou como Hamilton veio até aqui para ver se encontrava o meu filho, mas ninguém sabe onde ele está”, disse Nascimento. Ele informou ainda que o filho não levou nenhum peça de roupa com ele. 

 

Família das vítimas vive pesadelo

 

O pesadelo não acabou para a família de Flávio Martins de Carvalho, de 24 anos,. Pelo menos para a mãe dele, a funcionário pública Edna Maria Martins, 44. Ela está em estado de choque. Passa os dias sob efeito de calmantes. Chora e não se conforma. Espera que o telefone toque e que seu filho esteja do outro lado da linha.

 

Mas, na noite de quarta-feira, tios e primos de Flávio foram até a 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria) para saber se era verdade que tinham encontrado os suspeitos do duplo assassinato. Ao chegarem lá, depois que tiveram acesso aos depoimentos, a esperança desmoronou. Não há mais ou que esperar.

 

O tio de Flávio, Antônio Barbosa de Araújo, 64 anos, não quis acreditar na barbaridade que acabara de saber. “Foi horrível para todos nós”, lembra. “No fundo, a gente ainda tinha esperança.

 

Refeito do susto, Antônio espera agora que o pesadelo termine. “Esperamos que o corpo seja liberado o mais rapidamente possível para que possamos velar nosso Flávio”, aguarda.

 

O primo de Flávio, comerciante Paulo Roberto Barbosa, de 28 anos, não sabe o que dizer depois que leu o relato dos bandidos. “Eles (Flávio e Gabriela) pediram para não morrer, imploraram para ficar vivos e esses nojentos não ouviram”, revolta-se.

 

Além de primo, Paulo Roberto era o melhor amigo de Flávio. Na fatídica noite de sexta-feira, eles haviam combinado de dançar na boate Capital, em Taguatinga.

 

Sem volta

 

“Nada trará a vida dele de volta, mas espero que esses marginais sejam punidos com Justiça”, pede a prima de Flávio, Vânia Anchieta, de 27 anos. Na manhã de ontem, ela foi até a 33ª DP para poder confirmar a história. A emoção foi incontida. Chorou abraçada a um parente.

 

No início da tarde, o vice-diretor do Instituto de Medicina Legal (IML), Aluísio Trindade Filho, confirmou. Por meio da superposição de radiografias chegou-se à conclusão: o corpo é mesmo de Flávio. O enterro será hoje, às 9h, no cemitério Campo da Esperança. Edna, a mãe, ainda não consegue acreditar.

 

O Correio Braziliense tentou ouvir a família de Gabriela Adler durante todo o dia. O jardineiro Antônio Cosme Pereira, que trabalha na casa, atendeu o telefone e disse que a mãe dela e os irmãos haviam saído. Provavelmente não retornariam. “Eles tão muito abalados. Me disseram que iam viajar.”

 

O governador Cristovam Buarque, por telefone, falou ao Correio: “Esse crime foi sem nenhuma razão lógica. A polícia pegou os bandidos. Agora, espero que a Justiça os puna exemplarmente. Tenho duas filhas jovens e posso avaliar a dor dos pais dos estudantes”.

 

Um assassino com lágrimas nos olhos

 

Carlos Souza, acusado de liderar uma gangue de pivetes que matou o casal de estudantes, diz que chorou depois de atirar em Gabriela

 

Carlos Rodrigues de Souza, 21 anos, acusado de ter participado do assassinato dos dois estudantes da Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF) tem o olhar frio e distante. Ontem pela manhã, enquanto era sabatinado por uma dezena de jornalistas e policiais na 33ª Delegacia de Polícia, ele permaneceu quase todo o tempo impassível, sem demonstrar qualquer emoção.

 

As marcas escuras de hematomas em torno dos olhos que, segundo ele foram resultado dos tapas que levou dos policiais, davam-lhe um aspecto ainda mais assustador.

 

Souza disse estar arrependido, pois nunca havia matado uma pessoa antes e que somente atirou na estudante Gabriela Adler Assunção, 22, porque Galileu ameaçou matá-lo também. Enquanto relatava o momento exato em que disparou o revólver contra o corpo da estudante, emocionou-se pela primeira vez. Segundo ele, lágrimas escorriam pelas faces da estudante, que viu o ex-namorado ser morto pelo outro assassino segundos antes de ser atingida pelos tiros. “Não olhei no olho dela não”< disse Souza. “Na hora fechei os olhos, apontei pra ela e atirei. Só vi o sangue escorrendo. Baixei o olho e comecei a chorar”.

 

Por detrás da máscara de assassino, familiares e vizinhos garantem que existe um bom rapaz, que apenas não teve sorte na vida. “Era um bom vizinho”, disse o enfermeiro Washington Luís Pacheco, 35, vizinho de Souza.

 

Há apenas quatro meses, Souza havia voltado a morar com a mãe, na Quadra 203, em Santa Maria, depois de ter passado cerca de sete anos perambulando pelas ruas de Ribeirão Preto (SP). Foi nessa cidade que ele foi apresentado ao mundo das drogas.

 

Primeiro cheirou cola de sapateiro. Depois, passou também a fumar maconha. Até que um dia Souza, segundo ele, foi ajudado por um major da reserva do Exército, Rui Cardoso de Almeida. O major, informou a mãe, praticamente o adotou. Deu casa, comida e até dinheiro para o rapaz comprar “as coisinhas” dele.

 

“Mas no final do ano passado o vô Rui me ligou dizendo que o menino estavam causando muitos problemas e que ele o mandaria de volta para cá”, contou a mãe de Souza, a costureira Francisca Rodrigues de Lima. O rapaz chegou no Distrito Federal em Novembro. A mãe decidiu ajudar o filho. Foi até o Centro de Ensino 403, que fica a cerca de 250 metros da sua casa, e matriculou Souza na 2ª série do curso Supletivo de Primeiro Grau.

 

“Enquanto ele estudou aqui não tivemos nenhum problema com ele não”, disse o diretor da escola, Alessandro Borges Tatagiba. “Aqui tem alguns elementos que são marginais, por isso, quando alguém aprova alguma coisa a gente sempre fica sabendo. Mas com esse rapaz nunca tivemos problemas”. Para estimular o filho, a mãe matriculou-se na 3ª série do curso Supletivo.

 

Infância difícil

 

Na infância, segundo a costureira, Souza foi um menino bastante revoltado porque o pai não o reconhecia como filho. Aos seis anos, fugiu de casa e foi morar nas ruas do Cruzeiro. Quatro anos mais tarde, conseguiu emprego de ajudante em uma pequena lanchonete, retornou para casa, mas não demorou muito e voltou a ter problemas com a mãe.

 

Ela acabou mandando souza para a Paraíba, onde morava o pai. “Lá, foi espancado pelo pai, que até chegou a amarrá-lo com os pés para cima”, contou a mãe, que atualmente mora numa casa de quatro cômodos, com cinco filhos e mais uma irmã, decorada de forma modesta. “O pai disse que não era pai dele coisa nenhuma. Que só tinha dado um ovo e mais nada”.

 

Pelo fato de a mãe ter cabelos escuros e pele morena, e ele ter pele e cabelos claros, Souza achava que não era filho legítimo. Segundo a costureira, ele sentia um ciúme quase doentio do irmão Evandro Lima, 17, que há três meses está preso no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje). “Ele sempre dizia que eu gostava mais do Evandro do que dele”, disse a mãe.

 

Há cerca de um mês, o rapaz estava namorando a dançarina Andréa, que não quis dar o nome completo. Souza se animou e até conseguiu um emprego de pedreiro em uma obra, mas como tem problema de vista (ele é quase cego, segundo a mãe), foi logo dispensado do serviço. “Eu estava tentando juntar o dinheiro para gente construir uma casinha para que a gente se casasse até o final do ano”, contou a namorada.

 

Mãe não crê na confissão do filho

 

A mãe de Carlos Rodrigues de Souza, a costureira Francisca Rodrigues de Lima, garante que o filho dela confessou um assassinato que nunca cometeu. Ela alega que na última sexta-feira à noite, quando de acordo com a polícia o casal de estudantes teria sido assassinado, o filho não deixou a rua onde mora.

 

Duas vizinhas, a namorada Andréa e a própria mãe garantem que estavam com ele ou pelo menos viram Souza várias vezes das 19h até as 23h30. “Ele ficou comigo, com a Andréa e mais um garoto aqui na esquina da rua ouvindo música e bebendo com a gente”, jurou a vizinha, que não quis ser identificada.

 

“Antes da meia-noite ele chegou em casa e disse que ia dormir”, contou a mãe. Souza dormia em um minúsculo quarto de madeira nos fundos da casa, onde ontem mantinha pendurados na parede um poster do Corinthians, time de futebol do qual ele era torcedor fanático, e figuras de cachorros.

 

“Não tinha como ele deixar esse quarto sem alguém ouvir”, disse a costureira. “Eu tenho certeza de que ele não matou aqueles estudantes. Tenho certeza de que tem gente graúda por trás disso”.

 

Policiais informaram que as quatro testemunhas que a costureira garante que o filho tem não são suficientes para livrá-lo da cadeia. Além de ter confessado a participação no assassinato, e de todos os indícios apontarem para a culpa dele, a polícia disse que é comum familiares, amigos e parentes darem testemunhos favoráveis em situações como essa

 

Barra pesada

 

A mãe contou que na semana passada, o filho mais novo, Evandro Rodrigues Lima, que está preso da Ceje, teria avisado o irmão para manter distância da quadrilha do menor.

 

Evandro está preso a cerca de três meses por ter participado de um roubo, que segundo a costureira, foi planejado por Galileu. “O Galileu foi preso com ele, mas foi liberado dois meses depois”, disse a mãe. “Por que o meu filho terá que ficar preso por seis meses se eles cometeram o mesmo crime?”

 

Moradores das redondezas tem medo de falar sobre a violência e as supostas quadrilhas de ladrões e traficantes existentes na região. “Aqui a gente tem que tomar muito cuidado, moça, porque é barra pesada”, disse um morador que não quis ser identificado.

 

Assassino pode pegar meio século de cadeia

 

Mais de meio século de cadeia. Essa é a condenação que o desempregado Carlos Rodrigues de Souza, 21 anos, poderá receber por participar do assalto seguido de morte dos estudantes Gabriela Adler Assunção, 22 anos, e Flávio Roberto Martins de Carvalho, 24 anos. A avaliação é do promotor chefe do Fórum do Gama, Wanderley Ferreira dos Santos, que acompanhou o depoimento do assassino confesso na 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria)

 

Depois de ressalvar que sua análise do caso só valerá se o inquérito policial confirmar a versão do acusado, Wanderley Santos explicou ao Correio o que Carlos de Souza enfrentará no tribunal. O julgamento poderá ocorrer ainda neste semestre.

 

Destino diferente terão os dois cúmplices de Carlos, menores de 18 anos. Protegidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, não receberão castigo maior que internação por até três anos no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje).

 

Carlos deverá ser julgado por latrocínio, de acordo com o parágrafo terceiro do artigo 157 do Código Penal Brasileiro. A pena para esse crime (assalto seguido de morte) é de 20 a 30 anos de prisão. Por ter feito duas vítimas, poderá receber dupla condenação — duas penas, somadas.

 

Pena dura

 

Wanderley Santos acredita que as circunstâncias vão convencer o juiz a não atribuir ao réu a pena mínima. “Creio que o acusado poderá receber, no mínimo, duas penas de 25 anos pelo latrocínio, o que daria 50 anos em regime fechado”, detalha o promotor. Carlos de Souza deverá responder ainda pelo crime de ocultação de cadáver, com pena variando de um a três anos de prisão.

 

Latrocínio é considerado crime hediondo. Por isso, o condenado tem de cumprir pelo menos dois terços da pena atrás das grades. Isso barra o acesso do réu a benefícios como liberdade condicional e prisão domiciliar.

 

Sem benefício

 

Caso seja condenado a pelo menos 48 anos de prisão pelo assalto, Carlos só terá direito a algum benefício depois de cumprir dois terços desses período, o que dá 32 anos. Antes disso, porém, ganharia a liberdade porque a legislação brasileira não permite que nenhum criminoso fique preso por mais de 30 anos seguidos.

 

Para o cidadão Wanderley dos Santos, pai de duas crianças, a pena máxima que pode ser atribuída ao réu ainda é leve. “Não acredito na recuperação de uma pessoa assim, que demonstra tal descaso com a vida humana”, desabafa. “Um caso como esse merecia a pena de morte, mas cabe somente ao Congresso criar essa pena.” O promotor estima que o julgamento ocorrerá até junho no Tribunal do Gama. 

 

 

 

Assalto, seqüestro e morte em pouco mais de doze horas

 

Os acusados Carlos Rodrigues de Souza, 21 anos, J.R.S., 16, e C.P.S., 15, se reuniram na tarde de sexta-feira, dia 27, em Santa Maria. Eles combinaram que iam assaltar um carro. O grupo seguiu para o Gama, onde assaltaram um casal. Mas, o veículo quebrou no Pedregal e foi abandonado. Os três assaltantes, no entanto, não desistiram e decidiram seguir de ônibus para a Asa Sul à procura de outras vítimas.

 

O que era pra ser um roubo de carro terminou em tragédia. Gabriela e Flávio conversavam dentro do Fiat Tipo num estacionamento por trás da Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF) quando foram abordados por Carlos, mais conhecido como Galego. Ele estava armado com um revólver calibre 38. O menor J.R., apelidado de Galileu, também ameaçava estudantes, com uma pistola 380 na mão. O terceiro integrante do grupo — com uma pistola 6,35 mm — ficou dando cobertura.

 

O casal ainda ofereceu dinheiro e os dois carros — o Ômega de Flávio estava próximo — em troca da vida. De nada adiantou. Os dois foram obrigados a deitar no banco traseiro do Fiat Tipo de Gabriela. O grupo pegou a Saída Sul em direção a Santa Maria. Galego foi dirigindo o Tipo enquanto Galileu e C.P.S., também conhecido por ET, seguiram no Ômega de Flávio. O trio seguiu pela BR-040 e entrou numa estrada de terra, próximo de um local conhecido como Saia Velha, onde executou o casal. Era quase 1h da madrugada.

 

Drogas

Segundo Carlos Rodrigues, Galileu comandou a execução de Gabriela e Flávio. Os três criminosos tinham fumado maconha e bebido cachaça antes de roubarem o Gol no Gama. Antes de atirar no casal, os assassinos pegaram objetos pessoais e pediram a senha do cartão de crédito de cada um. Em seguida, Galileu deu dois disparos contra Flávio, apesar dos apelos de Gabriela. “Não faça isso pelo amor de Deus”, teria dito a estudante, contou Carlos Rodrigues.

 

Carlos disse que por um instante voltou a si e percebeu o que estava cometendo. “Relutei em matar a menina. Mas fui obrigado pelo Galileu. Ele ameaçou me matar se não atirasse”, revelou. Galego disse que se virou e disparou três vezes contra Gabriela. Em seguida, Carlos se afastou e voltou para o Ômega. Enquanto isso, os menores colocaram o casal dentro do porta-malas do Fiat Tipo. É provável que nesse momento os estudantes tenham sido espancados.

 

Com os corpos no porta-malas, os bandidos seguiram para Luziânia (GO). Eles pretendiam dar sumiço nos corpos e pararam próximo ao parque Acquaplay. Os menores retiraram gasolina do Ômega de Flávio e espalharam pelo Fiat Tipo. “Foi Galileu que riscou o fósforo e jogou dentro do carro”, revelou Carlos.

 

Bolívia

 

De posse dos cartões de Flávio e Gabriela, os assassinos saíram em direção a Anápolis (GO) e sacaram R$ 450 num caixa eletrônico do Banco Bradesco. Já passavam das 4h de sábado, dia 28. De acordo com Carlos, foi de iniciativa de Galileu ir de até Santa Maria oferecer o Ômega a um receptador de veículos roubados. “Galileu entrou na casa enquanto eu fiquei do lado de fora com ET”, contou. Pelo carro — que segunda a polícia seria trocado por drogas na Bolívia — foi acertado um valor de R$ 3,5 mil.

 

Os três  homicidas se separaram e tornaram a se encontrar no domingo para um novo assalto. Carlos afirmou que Galileu ainda voltou até a casa do receptador para terminar de fechar o negócio. Segundo a polícia, essa pessoa ficou com os cartões de crédito e talões de cheques do casal. E seria o responsável pelos saques efetuados na conta de Flávio em duas cidades do Mato Grosso, próximas da divisa do Brasil com a Bolívia.

 

Grupo roubava há meses

 

A polícia de Santa Maria já estava atrás de Galileu, Galego e ET há alguns meses. O grupo atuava na cidade e redondezas sempre roubando carros — há indício de um quarto integrante ainda foragido. No domingo seguinte ao assassinato dos estudantes, o trio se reuniu mais uma vez para nova empreitada. Dessa vez, para roubar no Novo Gama (GO). Lá, tomaram o Santana do policial militar Ernaldo Abdias da Silva, que estava acompanhado da namorada Daniele.

 

O policial avisou o Centro de Operações da Polícia Militar, que passou a informação para as viaturas nas proximidades. O Santana foi interceptado ainda em Pedregal (GO). A partir daí começou uma perseguição. Segundo a delegada Laís Cadman, da 33ª DP, os dois menores conseguiram escapar enquanto Carlos Rodrigues foi preso pelos PMs em Valparaíso.

 

Houve troca de tiros um policial militar saiu baleado na mão. Carlos Rodrigues foi preso e encaminhado à delegacia de Luziânia. Em seu poder, estava o mesmo revólver calibre 38 usado para matar Gabriela. Até então, a polícia não sabia que ele participara do duplo homicídio dois dias antes. Por meio de investigações, os agentes da 33ª DP (Santa Maria) chegaram até ET. O menor foi preso na quarta-feira à noite. Mas a polícia não informou onde estava o garoto no momento da apreensão.

 

Na delegacia, o menor confessou o assassinato do casal de estudantes na sexta-feira e entregou os cúmplices. Galileu foi preso, ontem por volta das 4h, numa chácara em Pedregal. Não reagiu à prisão. Pegar Carlos foi mais fácil. Ele já estava detido na Delegacia de Luziânia (GO). O delegado Antônio Cavalheira teve apenas o trabalho de pedir a transferência do assassino para a sua jurisdição.

 

Capa do Correio Braziliense de 6 de março de 1998 sobre número de pessoas assassinadas no DF
Arquivo/CB/D.A Press - Capa do Correio Braziliense de 6 de março de 1998 sobre número de pessoas assassinadas no DF
Arquivo/CBD/A. Press -
Reprodução - Gabriela Adler, estudante da UDF assassinada em 1998