Esta matéria foi publicada originalmente na edição de 24 de novembro de 1979 do Correio. Sua republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram.
Logo mais o Cine Brasília estará sendo usado para o seu primeiro espetáculo de “música popular brasileira”, desde que, a partir da reabertura em julho de 76, passou a ser gerido pela Fundação Cultural. Já apresentado nas principais capitais, Elis, Essa Mulher promete lotar a platéia do Cine Brasília. Não se pode dizer “apesar do preço salgado (300 cruzeiros)”, porque já foi contado, há muito tempo, o número de brasilienses que irá assistir, nas duas apresentações de hoje e amanhã, o aguardado espetáculo com a considerada técnica vocal mais impecável do Oiapoque ao Chuí: apenas 1222 espectadores, o dobro do número de poltronas existentes naquela sala. Hoje, aliás, Elis Regina pode dar-se ao luxo de escolher onde vai cantar. Se o Cine Brasília é uma sala mais confortável que a Escola-Parque, por exemplo, é também verdade que sua acústica não é das melhores.
A despeito do seu indiscutível êxito, Elis divide a, digamos, opinião crítica. Ninguém chega a desmerecer a alta técnica da cantora, mas muitos a situam bem abaixo do que as suas interpretações, sobretudo em disco, careceria: a emoção.
Divergências à parte, não parece ser exagero vislumbrar que o atual lema da cerreira de Elis derivou da seguinte “linha de vida”: “Nunca deixar minha cabeça ser feita, e também não tou afim de fazer a cabeça de ninguém. Poderia até fazer, mas não é o ponto de partida, a condição sine qua non de minha profissão, da minha atividade, ou da minha filosofia de vida. Eu tou aqui dando um toque”. E que toque!, dirão seus fãs. “O fato de eu ser uma cantora”, continua Elis, “na minha cabeça, não me diferencia muito de uma professora, pelo motivo de que ambas somos profissionais, só que em áreas distintas. A professora pode dar uma grande aula, mas não vai ser capa de revista. Nós temos uma carga, uma sobrecarga narcisista, de egocentrismo, e se a gente não ficar atento, samba. Pode parecer estranho eu dizer que encaro fazer um bom disco como encaro um jardineiro fazer um grande jardim, mas, profissionalmente, é a mesma coisa. A sobrecarga, as lantejoulas e os paetês, não correm pela minha conta, são outros que colocam”.
Logo que gravou seu último elepê, que dá nome ao show de hoje à noite, deixou de lado a Assim (Associação de Intérpretes e Músicos), entidade que dirige, para cuidar melhor do lançamento do disco e adaptá-lo para o palco. Ao contrário dos espetáculos anteriores (Falso Brilhante, Transversal do Tempo), que foram marcantes à sua carreira de intérprete, Elis, Essa Mulher é um recital no qual ela também revive momentos de outros discos recentes, como Conversando no Bar, Ponta de Areia (ambas de Milton Nascimento e Fernando Brant) e A Comadre e Um Por Todos, e Todos Por Um (João Bosco - Aldir Blanc) e apresenta canções que não constam em sua discografia mas que têm o porte de Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos). O recital é dirigido por César Camargo Mariano, seu íntimo colaborador há seis anos, e que se ocupa também dos teclados, e conta com a participação de uma recém-formada banda (Crispim Del Cistia, guitarra e teclados; Ricardo Silveira, guitarra; Nenê, baixo; Moreno, bateria; Chacal, percussão).
Um dos pontos positivos da carreira de Elis, desde que venceu, em 1965, um festival de música com Arrastão (Edu Lobo), foi e continua sendo a força que ela deu aos compositores novos. A lista, imensa e variada, inclui entre outros, Milton Nascimento, Bosco e Blanc, Sueli Costa, Fagner, Belchior, Zé Rodrix, Guarabira, Gilberto Gil, e, mais recentemente, Fátima Guedes e a dupla Tunai-Sérgio Natureza. Além disso, em continuidade ao trabalho iniciado pelo Tropicalismo, Elis praticamente fez aumentar o interesse de uma parcela do público brasileiro com respeito ao cancioneiro dos vizinhos latino-americanos, incluindo em Falso Brilhante, Gracias e La Vida, de Violeta Parra, e Los Hermanos, de Atualpa Yupanqui.
Elis Regina
"Endurecer para a batalha da vida, mas sem perder a doçura"
Não são poucos os que consideram Elis Regina a melhor cantora brasileira. A longa carreira para chegar a esta posição de destaque na MPB, Elis iniciou cantando em conjunto de bailes, como crooner. Mas o sucesso só veio quando ela ganhou o primeiro grande festival Festival, interpretando Arrastão, de Edu Lobo. A partir daí sua escalada rumo à fama foi um fato quase natural.Nos últimos anos a imagem de uma nova Elis vem sendo projetada. Aliada à grande cantora está a mulher politizada, ativa, participante. É esta Elis que o brasiliense poderá ver esta noite (em duas sessões, às 21 e 23 horas) no Cine Brasília, onde ela apresenta Essa Mulher, um show que vem sendo aplaudido em todo o Brasil e que teve a mesma recepção em Buenos Aires.
Antes da estréia, Elis conversou comigo. Foi um papo franco, aberto, em que muitas coisas foram questionadas e esclarecidas.
CB- Elis, não são poucos os que a consideram a melhor cantora brasileira. De onde veio todo este traquejo, segurança, afinação e força interpretativa?
ER - Minha formação como cantora tem como base o período que fui crooner de conjunto. O conjunto de baile é a maior escola que um cantor pode ter. Não é fácil ser solista de um conjunto de baile. Ali a gente aprende a se virar em vários flancos. Aprende ter respeito aos horários, ao público, enfim, aprende a ser profissional.CB- Seu surgimento para a MPB foi durante o primeiro grande Festival, quando você conquistou o 1º. lugar, interpretando Arrastão, do Edu Lobo. Agora, o que foi, realmente, que lhe projetou como uma cantora projetada?
ER- O Festival que venci, interpretando Arrastão foi na verdade o ponto de partida. A partir dali saí do anonimato, passei a ser cantora conhecida. Mas, importante mesmo, para me moldar como intérprete, como artista, foi o Fino da Bossa, um programa que fiz durante algum tempo na TV-Record. Naquele programa deixei de lado alguns vícios, aprendi muitos macetes e descobri em mim novas possibilidades.
CB- Depois fez o Som Livre Exportação e diziam que você era conivente com um programa meio chegado ao ufanismo.
ER- Não acho que o Som Livre Exportação tenha sido um programa ufanista, não, embora, em geral, as coisas que a TV-Globo faça tenham este cunho, pois é uma emissora que está enquadrada dentro do sistema. Mas não pode ser tachado de ufanista um programa que tinha Gonzaguinha, Aldir Blanc e Ivan Lins como cabeças. O Som Livre pintou numa fase muito difícil da vida do País. Nós estávamos muito traumatizados, muito assustados, como artistas e como pessoas. Víamos colegas exilados e outras truculências acontecendo em volta da gente. Não poderíamos de maneira nenhuma ser ufanistas num momento como aquele. A desorganização do programa é o que o fazia mole. Saía Gonzaguinha e entrava os Mutantes e assim por diante. É difícil dar personalidade a uma coisa, quando esta coisa não tem espinha dorsal.
CB- Houve também aquele período em que você foi exclusiva do programa do Flávio Cavalcanti.
ER- Nunca fui exclusiva do programa deste senhor. Nunca tive contrato com ele. Realmente participei de alguns dos seus programas. Mas para falar a verdade, até hoje não assisti nenhum destes programas. Agora, acho o seguinte: posso não aprovar algumas coisas que ele faz, mas não devo julgá-lo. Julgamento é algo tão arbitrário que não me atrevo a fazer. Além do mais, no mundo tem lugar pra todos. Cada um está ganhando seu pão, como pode ou sabe. A história é que se encarregará de fazer julgamento.
CB- No Governo Médiel você participou das Olimpíadas do Exército, cantando num show em Belo Horizonte, no Mineirão, se não me engano. Houve quem dissesse que você estava a serviço do sistema.
ER- As pessoas vão sempre dizer alguma coisa, reclamar de alguma coisa, sejam elas de direita, de esquerda ou de centro. Mas, em relação àquele episódio, devo esclarecer que participei das Olimpíadas do Exército imposta. Chegaram pra mim e perguntaram: Como é que é, você quer ir ou prefere ser levada? Diante de tanta amabilidade, fui. Houve quem dissesse que eu poderia apelar para respaldo popular que já possuía, mas Caetano e Gil eram popularíssimos e na hora que dançaram, dançaram feio. Eram tantas coisas horrorosas que a gente tomava conhecimento, que ficava difícil dizer não.
CB- Tempos depois, quando você fez Falso Brilhante e em seguida Transversal do Tempo disseram que você estava em sua fase panfletária.
ER- Pois é. Veja você como gira a cabeça das pessoas. Eu não via nada de panfletário em Falso Brilhante ou em Transversal do Tempo. Acho que ninguém tem o direito de chamar Aldir Blanc de panfletário, e foi ele quem idealizou Transversal do Tempo. A gente tava mesmo era de saco cheio e tinha mais era que botar a loucura da gente a serviço do trabalho da gente. Vamos aproveitar agora que o Rogério Nunes botou o pijama, e parar, também, de tesourar os outros.
CB- No ano passado, paralelamente às suas atividades artísticas, você desenvolveu um outro trabalho, o da criação da ASSIM (Associação dos Intérpretes e Músicos), para a qual lhe elegeram presidente. Mas me parece que a coisa não vingou. O que aconteceu?
ER- A ASSIM foi feita para proteger o direito autoral dos músicos, principalmente. Fizemos as planilhas de inscrição e tudo mais, mas os músicos não quiseram que a Associação vingasse. Fiquei um ano inteiro por conta disso e não houve retorno, nem emocional. Houve quem dissesse que não iria se inscrever na ASSIM porque a presidente era uma mulher. Coisa da maior pobreza. Enquanto o músico não se conscientizar e se considerar um trabalhador, ao invés de marciano ou lunático, e se unir, vai continuar tendo dificuldade para pagar o aluguel e comprar o feijão.
CB- Parece que as antigas arrecadadoras estão se rearticulando, numa tentativa de retomar o direito autoral. Como você vê isso?
ER- Desde o momento que o Ministério da Educação e Cultura criou o Conselho Nacional de Direito Autoral e normatizou o novo sistema de arrecadação, que as antigas arrecadadoras estão brigando e fazendo tudo para que o CNDA não funcione direito. Como o Conselho é um órgão ligado ao MEC, o Senhor Eduardo Portella é responsável pelo que vier-lhe acontecer.
CB- Ultimamente você foi à Suíça (Festival de Montreux), Japão e Argentina. Qual destas excursões foi a mais gratificante?
ER- Ter ido ao Festival de Montreux, na Suíça, e a outras cidades européias, além do Japão, foi muito gratificante, primeiro por ter aberto a porta de novos mercados, e também pela possibilidade de sentir meu trabalho ser aceito por outros povos. Mas, estruturalmente, o que boliu comigo foi ter ido à Argentina. Aquilo cutucou com o meu senso de solidariedade. Tenho duas músicas - Gracias a La Vida e Los Hermanos - censuradas lá, e minha ida pode parecer conivência com o regime de Videla. Mas não é. A gente tem mais é que fechar com o povo argentino, uruguaio, chileno e paraguaio. Não se pode esquecer que o Governo daqueles países não foi eleito pelo povo. Lá em Buenos Aires, por exemplo, uma senhora, mulher de um metalúrgico uruguaio, saiu de seu país só para ver o show. Ao final, chorando, me perguntou por que nós, artistas brasileiros, não gostamos de ir ao Uruguai. Disse que o povo não tinha culpa pelo que ocorria em seu país.
CB- A imagem da Elis que é projetada, agora, é de uma jovem senhora, preocupada com a aparência, mas também de uma mulher politizada, que canta o mais belo hino da Anistia - O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. Você assume esta imagem?
ER- Taí uma coisa difundida pelos machistas. A mulher participante não pode ser coquete e a coquete é uma imbecil. Eu não divido o mundo em mulher oprimida pelo homem e homem poderoso. Tanto a mulher como o homem são pessoas subjugadas por um sistema maior, que não tem sexo, que é o cifrão. As mulheres durante muito tempo encaixaram este golpe. Eu, também, como queria me mostrar inteligente, não me preocupava com este negócio de me arrumar. No que eu estou legal comigo, as pessoas também estão. Assumo esta de jovem senhora. Tenho 34 anos, 3 filhos. Se não me acho bonita, me considero interessante. Percebo um certo ti-ti-ti em torno de mim, uma pessoa livre, que quer desfrutar disso. Tão livre que optou por um cara. Quanto ao fato de eu ser politizada, isso é um processo natural. A gente vai tendo consciência das coisas e a consciência vai se apurando. Temos que endurecer para a batalha da vida, mas sem perder a doçura.
CB- Elis, este boom de mulheres na Música Brasileira?
ER- Bicho, eu acho ótimo. E uma decorrência da reavaliação que as mulheres fizeram do seu papel, de sua função na sociedade. E não só na música que isso acontece não. É da maior saúde um mundo cheio de cachos, rendas, babados e flores.
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