Cidades

Vozes da rua

Invisibilizadas pela sociedade, mulheres em situação de rua são exemplo de sobrevivência. Três delas abriram o coração e contaram ao Correio histórias de vida. A quinta matéria da série Elas vão à luta apresenta Meire, Raysa e Fabiana, que batalham, diariamente, para mudar de vida

Correio Braziliense
postado em 07/03/2020 04:16
Fabiana Aparecida e Meira Romão Reis tiveram a oportunidade de ter uma vida melhor quando conheceram a Escola Meninas e Meninos do Parque


Os grandes centros urbanos são, para uns, ponto de passagem. Mas para outros, o único lugar disponível para dormir, seja sob Sol ou chuva. Se estar em situação de rua não é fácil, sendo mulher os problemas aumentam. Além das dificuldades comuns a essa população, elas precisam lidar também com assédios, ameaças de estupro, a responsabilidade de sustentar filhos, e a falta de segurança. Em comum, elas têm a vontade de mudar de vida.

Com a idade, vem a experiência. O contraste do olhar severo com o sorriso simpático são reflexos de uma vida de força e luta para Meire Romão Reis, 61 anos. Os obstáculos para ela começaram cedo. Aos três dias de vida, foi abandonada e passou a infância na antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, em São Paulo (Febem/SP). Estudou até a 4ª série, mas, sem condições, não continuou. Mesmo assim, se esforçou para trabalhar na cidade mais populosa do país.

Meire tinha 24 anos quando perdeu o emprego em uma empresa de serviços e limpeza. Frustrada, comprou uma passagem só de ida para Brasília, em 1982, e por aqui ficou. Conheceu o primeiro marido e os dois trabalhavam como caseiros. Aos 36 anos, descobriu que estava grávida, mas o esposo a abandonou logo após o nascimento do menino. “A dona da casa em que a gente trabalhava pediu a criança. Perguntou para onde eu ia, como iria criá-lo. Poxa, era o meu único filho. Pensei, pensei, e acabei aceitando”, lembra.

Pouco tempo depois, conheceu o segundo marido. “Ele bebia demais e me agredia. Passamos 13 anos juntos, dessa forma. Eu não denunciava porque achava que não iria mudar nada. Mas um dia eu cansei e fui embora. Ele disse que eu não teria para onde ir e eu falei que preferia a rua”, relata Meire, à época com 54 anos. Inicialmente, ela dormia nos bancos do Parque da Cidade. Depois, passou a se abrigar na sala de espera de um hospital, onde dorme todas as noites desde 2015. 

Das ruas, conheceu a Escola Meninos e Meninas do Parque e voltou aos estudos. Concluiu o ensino fundamental, ensino médio, está terminando o curso de espanhol no Centro Interescolar de Línguas (CIL) e planeja começar a estudar francês. De tantas horas gastas na escola, foi aprovada em um processo seletivo e contratada como educadora social. Com o pagamento, está economizando para o sonho de ter onde morar.

 “É constrangedor passar por tudo isso. Na rua, as pessoas nos olham torto, acham que todos bebemos e usamos drogas, que somos mau-caracteres. E sem família, nunca tive nem com quem chorar, a quem recorrer”, detalha Meire. “Eu nunca usei nada, nunca bebi. Tinha tudo para ser uma pessoa ruim, mas nunca cheguei nessa situação. Quem decide sua vida é você mesmo. A maior lição que aprendi é que devemos ser educados, e procurar entender o sofrimento dos outros”, ensina.





Pé firme

O ano de 2020 é de mudanças para Fabiana Aparecida do Nascimento, 37. Mãe de sete e avó de quatro, ela hoje comemora a união recuperada com a família. Aos 12 anos, fugiu de casa e começou a usar drogas. Do tíner ao crack, ela tornou-se uma pessoa inquieta e agressiva. Aos 14 anos, teve a primeira gravidez. No terceiro mês de gestação, o companheiro foi assassinado. Conheceu outra pessoa, com quem teve mais dois filhos. Ele no entanto, também morreu.

Sem teto, ficava pelas ruas de Sobradinho e Taguatinga. Perdeu a guarda de seis filhos. “Só fiquei com a caçula. Criei ela até ter 3 anos, e entreguei para a minha mãe”, lembra. “Tomei uma facada. Estava em Taguatinga e tinha acabado de pegar uma cesta básica. Um cara quis me tomar (a cesta), eu não deixei, então ele me esfaqueou”, recorda Fabiana. “Eu já estava morrendo e ninguém chamava o socorro. Mas os bombeiros vieram e me levaram para o hospital. Passei três dias em coma.”

Ao acordar, ela estava desiludida com a vida. Afundou-se ainda mais nas drogas e assim ficou até voltar a estudar. No início, não levava a coisa a sério, mas, neste ano, a situação está diferente. “Estou com pé firme e vou continuar. Faltam dois anos para me formar e quero muito ser costureira”, garante. “Morar na rua é ser humilhada. É pedir comida e não darem. Já fiquei o dia todinho e a noite sem comer. Procurei na lixeira e não achei nada. Passei frio na chuva, sem coberta porque roubavam.”

O sonho dela é ter a própria casa. “Para quem está na rua eu digo: bote a cabeça no lugar. A rua e as drogas só trazem infelicidade, morte ou cadeia. Nunca fui presa, mas tive amigas que foram. E como mulher, sofremos ainda mais. Os caras vêm para cima, já tentaram me estuprar três vezes.” Hoje, ela exalta a proximidade com a família. “Meu netinho é grudado em mim. À noite, a mãe dele me liga porque ele não dorme, chamando a vovó”, emociona-se. 

Guerreira

“Ser mulher é tudo. Todas temos forças. A gente não tem dono.” A frase é de Raysa Santos, 27. Do assunto ela entende. A jovem viveu dois relacionamentos em que era vítima de violência. Aos 16 anos, casou-se com o primeiro namorado. “No começo era um mar de rosas, mas ele caiu no uso do crack, e começou a me bater. Denunciei na Lei Maria da Penha e ele foi preso”, recorda.

Raysa ficou nas ruas, onde conheceu o segundo companheiro. Com ele, a situação piorou. Os dois moravam em um barraco em Santa Luzia, na Cidade Estrutural. Em uma noite, sob efeito de drogas, ele enfiou um facão na cabeça dela. “Fiquei com aquilo preso na minha cabeça a madrugada inteira porque ele não me deixava sair para pedir ajuda. De manhã, consegui escapar.”

O problema é que o filho dela, na época com 1 ano, acabou ficando na casa, com o pai. “Tive de abandoná-lo para salvar a minha vida”, afirma. “Mas essa semana, descobri que ele foi preso e vou buscá-lo”, garante. Raysa tem mais dois filhos, um menino e uma menina, que moram com a avó materna. O caçula está com 2 anos e o sonho dela é ver as crianças reunidas com ela. “Antes disso, preciso ter a minha casa, para poder dar condições a eles”, diz.

Apesar de hoje estar morando com a mãe, os anos na rua ficarão na memória para sempre. “Enquanto mulheres, somos oprimidas, xingadas e humilhadas. É perigoso até dormir.” Para ela, o primeiro acolhimento aconteceu na escola do Parque da Cidade. Ali, Raysa começou aulas de circo, e hoje se apresenta com os colegas, em cima de pernas de pau. “No primeiro dia que cheguei, recebi um abraço e senti que não estava só.” Denunciar os agressores também a fortaleceu. “Eu achava que ia chegar na delegacia e nada ia acontecer. Mas fizeram muita coisa. Prenderam o meu ex e me ajudaram a conseguir uma medida protetiva”, relata.


Escola Meninas e Meninos do Parque
O antigo vestiário localizado próximo ao estacionamento 6 do Parque da Cidade é o único centro de ensino da cidade focado no atendimento de jovens e adultos em situação de rua. A escola Meninos e Meninas do Parque funciona desde 1995. Os 16 professores ministram as disciplinas do ensino regular (como matemática, português e história) para formação no ensino fundamental. Assim que chegam, os estudantes recebem um kit com toalha, sabonete e camiseta do uniforme escolar para que possam tomar banho e se trocar. Depois podem lanchar e são acolhidos na turma de integração que, além de avaliar o conhecimento de cada um para determinar em qual nível serão colocados, também tem o objetivo de ensinar sobre coletividade e respeito às diferenças. Os estudantes podem ser matriculados a qualquer momento do ano porque o ensino é individualizado, isto é, dentro de uma mesma turma pode haver alunos com níveis diferentes. 


Elas vão à luta
Elas estão na educação, saúde, esporte, política. Não importa a área, as mulheres, há muito, deixaram para trás o estigma de cuidar do lar e dos filhos e assumiram lugar de destaque, servindo de inspiração para todos. Na série Elas vão à Luta, o Correio conta as histórias dessas pessoas de destaque no Distrito Federal. 


"É constrangedor passar por tudo isso. Na rua, as pessoas nos olham torto, acham que todos bebemos e usamos drogas, que somos mau-caráter. E sem família, nunca tive nem com quem chorar, a quem recorrer.” 
Meire Romão Reis


"Ser mulher é tudo. Todas temos forças. A gente não tem dono.” 
Raysa Santos


"Morar na rua é ser humilhada. É pedir comida e não darem. Já fiquei o dia todinho e a noite sem comer. Procurei na lixeira e não achei nada. Passei frio na chuva, sem coberta porque roubavam.”  

Fabiana Aparecida do Nascimento
 
 

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