Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 08/03/2020 04:07
Riso tolo

Se um extraterráqueo aterrissasse na Terra e analisasse as cenas apresentadas como engraçadas ficaria estarrecido com a estupidez, a deselegância, a boçalidade e a desinteligência. A maneira como rimos é bastante reveladora de nossos valores, de nossa visão, de nosso caráter e de nossa alma. O possesso escritor russo Dostoiévski teria importância crucial em meu destino, pois eu morava em São Paulo e, aos 15 anos, assisti a uma cena que mudaria a minha vida. Recusei-me a rir da brincadeira que meus amigos faziam de pegar no couro dos gatos e atirá-los nos muros pelo prazer sádico de ouvir os gritos de dor dos animais.

Fiquei achando que havia algo de errado comigo, que eu era um E.T. e tinha um olho no meio da testa. Se todos riam, por que eu sentia horror diante daquela cena? Mas me libertei ao ler Crime e castigo, de Dostoiévski, e constatar que o personagem adolescente Raskolnikov se abraçara a um cavalo ensanguentado para evitar que ele fosse castigado pela chibata sob a gargalhada da turba.

Talvez o meu ato tivesse algo de heroico e não apenas de patético. Dostoiévski escreveu que a compaixão é a mais alta ideia humana. Sem ela, o ser humano anda de quatro. Não consigo achar graça em piadas sobre a morte, a tortura ou facadas. Revelam falta de compostura, de respeito, de decoro, de humanidade e de humor. Gracinhas que seriam tolas em um boteco, em um estádio ou em um banheiro passaram a ser propagadas aos quatro ventos.

O humor foi e continua sendo uma arma poderosa para desmistificar a impostura, os tiranos, os ignaros e os truculentos. Humor burro é algo inviável. No fim da ditadura, o presidente João Figueiredo declarou, em frente a uma baia, que preferia o cheiro de cavalo a cheiro de povo. Na semana seguinte, o jornal O Pasquim estampou uma foto de Figueiredo com a seguinte legenda: “Figueiredo e o cavalo: o cavalo é o da direita”.

A pretexto de romperem com o politicamente correto, autoridades propagam gracejos que degradam a si mesmo e aos cargos que ocupam. Por favor, excelências, meritíssimos, digníssimos e senhorias, mantenham um mínimo de compostura.

Na acepção mais alta, o humor é filosofia e poesia. Ante às cenas deprimentes a que estamos expostos nos últimos tempos, sempre me lembro de trecho escrito pelo poeta franco-uruguaio Lautreamont. Ele comenta o episódio do riso de um filósofo ao ver um asno comer um figo: “Ah, o filósofo insensato que se pôs a gargalhar vendo um asno comendo um figo. Nada invento, os livros antigos mostraram com mais detalhes esse vergonhoso despir-se da nobreza humana. Pois bem, fui testemunha de algo mais forte, vi um figo comer um asno. E, todavia, não ri, francamente, nenhuma porção bucal chegou a mover-se. A necessidade de chorar tomou conta de mim com tamanha força que meus olhos deixaram cair uma lágrima: ‘Natureza, natureza’, exclamei soluçando, ‘o gavião estraçalha o pardal, o figo come o asno e a tênia devora o homem’”.




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