Cidades

População transgênero enfrenta obstáculos para garantir direitos básicos

Vitórias diárias, como o atendimento especial em delegacias e no sistema socioeducativo, além de mais acesso ao ensino superior, são comemoradas


Além dos desafios que cercam crescer designado a um gênero com que não se identifica, a população transgênero do Distrito Federal enfrenta inúmeros obstáculos na vida social. A falta de empregabilidade, de segurança e de saúde marca a trajetória de quem vive marginalizado e luta constantemente por respeito e por outros direitos básicos.

“Muito ainda nos é negado”, observa a estudante de medicina veterinária da Universidade de Brasília (UnB) Mar Magalhães, 22 anos. Para ela, Brasília é uma cidade elitizada, especialmente no âmbito cultural. Além dos altos preços, grande parte dos museus e galerias da cidade se concentram no Plano Piloto. “O acesso a espaços é difícil quando se é um corpo trans e ainda se mora afastado do centro”, afirma a estudante, moradora de Ceilândia.

“Eu estou no início do processo de transição. Muitas pessoas como eu sofrem e sofreram muito mais”, diz Mar. “Nossos corpos não são menos válidos e capazes em relação aos cisgêneros. Existimos das mais diversas formas possíveis, e nos dar espaço é necessário.”

Mar iniciou o processo de transição em meados de 2019 e, desde janeiro deste ano, recebe acompanhamento no ambulatório trans do Distrito Federal. “Demorou para eu ter acesso, devido à quantidade limitada de profissionais. Apesar dessas limitações, a possibilidade de haver atendimento especializado gratuito é muito boa”, pondera.

A inauguração da unidade de saúde, que hoje atende Mar e outros 400 trans, em média, a cada mês, ocorreu em 2017. “O ambulatório do Distrito Federal surgiu após muitos anos de luta dos movimentos sociais e da pressão do Ministério Público para que tal serviço se instalasse na capital da República”, relembra Luiz Fernando Marques, médico de família e comunidade e um dos fundadores do local.

Segundo ele, o serviço prestado ainda não atende às principais necessidades de quem procura o atendimento especializado, como a dispensação de hormônios. A rede pública de saúde do DF também não realiza o procedimento cirúrgico para mudança de sexo. De acordo com a Secretaria de Saúde, os pacientes que queiram fazer a cirurgia precisam, inicialmente, passar por acompanhamento multidisciplinar no Ambulatório Trans. Após relatório médico, o paciente é encaminhado, sem custo, para fazer o procedimento em um dos cinco estados que fazem a cirurgia.

Vitórias celebradas

Nikolai Carlos Teixeira, 22, é um dos jovens trans que vivem na capital. Recém-formado em psicologia, ele conta sobre a dificuldade que tem enfrentado no mercado de trabalho. “Hoje, eu consigo identificar mais trans na faculdade que eu frequentava e também nas vagas de emprego, mas é um número muito pequeno. Não há estudos para mostrar a realidade do mercado.”



Apesar dos desafios cotidianos, Nikolai relata ter notado avanços desde o momento em que se reconheceu trans até hoje. “Mesmo que ainda haja várias questões, algumas vitórias a gente já teve. Eu visitei a Decrin (Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência) e me surpreendi com o preparo para lidar com a população LGBTQI%2b, desde o respeito ao pronome até o compromisso (dos agentes)”, detalha.

Desde 2004, comemora-se no Brasil o Dia da Visibilidade Trans em 29 de janeiro. A tradição surgiu quando ativistas trans participaram do lançamento da primeira campanha contra a transfobia, no Congresso Nacional. A data passou, então, a representar a luta cotidiana das pessoas trans pela garantia de direitos e pelo reconhecimento da própria identidade.

No Distrito Federal, a data foi celebrada durante a 4ª Solenidade em Homenagem às Pessoas Trans, no Salão Nobre do Palácio do Buriti. Pela primeira vez na história, a sede do Executivo local foi iluminada com as cores da bandeira trans — rosa e azul — em prol da luta contra a transfobia.

No evento, promovido pela Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus), foi assinado termo de compromisso que normatiza o atendimento à população LGBTQI dentro das unidades socioeducativas. O documento tem foco no respeito à identidade de gênero e à orientação sexual, garantindo aos adolescentes no sistema o uso do nome social e de vestimentas em acordo com a própria identidade de gênero, acesso aos tratamentos de saúde e acompanhamento dos processos de transição de gênero, e ainda regras para revista, entre outros direitos.

*Estagiários sob supervisão de Mariana Niederauer

Designação
O termo é utilizado por alguns para descrever pessoas que não são transgênero (mulheres trans, travestis e homens trans). “Cis-” é um prefixo em latim que significa “no mesmo lado que” e, portanto, o oposto de “trans-”. Refere-se ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o gênero atribuído a ele ao nascer.


Para saber mais


Atendimento restrito
As pessoas transgênero podem usufruir de atendimento especializado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) apenas com 18 anos. De acordo com a Portaria nº 2.803, de 2013, o acompanhamento psicoterápico e hormonioterapia fazem parte da modalidade ambulatorial e a realização de cirurgias e acompanhamento pré e pós-operatório, da hospitalar. Além disso, para o paciente ser considerado apto a cirurgias, como a de redesignação sexual e mastectomia, a idade mínima estipulada pelo Ministério da Saúde é 21. Outra restrição é a quantidade de hospitais públicos no Brasil habilitados para realizar a cirurgia de redesignação sexual. Somente cinco redes podem realizar o procedimento. Os candidatos à operação são direcionados para o Hospital das Clínicas de Porto Alegre (SC), HC de Goiânia (GO), HC de Recife (PE), HC de São Paulo (SP) ou Hospital Universitário Pedro Ernesto (RJ). Um paciente transgênero morador do Distrito Federal deve se locomover no mínimo 209km para fazer a redesignação sexual pelo SUS.

Onde encontrar ajuda


Decrin

» Endereço: Setor Policial, Lote 23, Conjunto D, Edifício do Departamento de Polícia Especializada (DPE), ao lado do Parque da Cidade. 

» Denúncia: para realizar uma denúncia anônima acesse 197 Denúncia On-line ou ligue para o telefone 197 opção 0. Além disso, o e-mail denuncia197@pcdf.df.gov.br e o WhatsApp (61) 98626-1197 estão disponíveis para esse tipo de serviço.

Ambulatório Trans
Endereço: Hospital Dia, 508/509 Sul
Funcionamento: das 7h às 12h e das 14h às 16h.