Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 10/03/2020 04:08
Mulher coragem

Como se sabe, eu sou um usuário; não disso que vocês estão pensando, mas do transporte público do DF. Todos os dias, tomava ônibus bem cedo. Não faço mais porque a Rodoviária, um local em que transitam mais de 700 mil pessoas por dia, tornou-se um lugar extremamente perigoso, sem que sejam tomadas as providências cabíveis para sanar o problema.

Quando a alvorada brasiliense despontava no horizonte, me deparava com uma senhora vendendo café e bolo na parada. No início, ela passou despercebida, como se fizesse parte da paisagem. No entanto, um detalhe despertou-me a atenção. Ela montou uma extensão na mesa onde servia os lanches para que as duas filhas, uma talvez de 6 e outra de 8, fizessem os deveres da escola.

As meninas garatujavam nos cadernos sob a vista da exigente senhora. A mãe era uma mulher do povo, na faixa dos 40 anos, bonita, mestiça, austera, empertigada, elegante, altiva, mas serena. Estava vestida de maneira impecável, imaculadamente branca, portava luvas e turbante para prender os cabelos. Imaginei que teria feito cursos de formação profissional, pois, apesar de vender quitutes em uma banca precária, fazia tudo com extremo esmero.

Servia café e bolo para os clientes com presteza, sem jogar conversa fora. Era concentrada, não desperdiçava gestos ou palavras. Ficava atenta, simultaneamente, ao movimento dos chegantes e ao das filhas que escreviam em cadernos na mesa ao lado. Fiscalizava cada detalhe com olhar severo. De vez em quando, dava alguma bronca concisa nas meninas, conclamando-as à seriedade das tarefas escolares. Encarnava autoridade e dignidade em cada gesto.

Acompanhei a cena durante alguns dias. Tive o impulso de conversar com ela e manifestar a minha admiração. Porém, considerei despropositada a intenção e permaneci em meu canto. Mas, de repente, aquela senhora desapareceu e outra ocupou a parada.

Prezada senhora, não sei o seu nome, nada conheço de sua vida, onda morava, se era casada, se criava as filhas sozinha. No entanto, gostaria de lhe dizer algumas palavras. Fiquei profundamente comovido com a sua iniciativa de conceber uma extensão da mesa para que as suas filhas estudassem em frente à parada de ônibus.

A senhora tem inteira razão na atitude; só a educação poderá superar o estado de miséria econômica, política, cultural, moral e espiritual em que estamos mergulhados. A sua bravura é admirável.

Para mim, a senhora é muito mais valente do que uma lutadora de MMA. Mata um leão por dia, enquanto muitas têm tudo e ainda reclamam da vida.

A sua tenacidade é capaz de mover montanhas de empecilhos. Talvez não saiba, mas a senhora é verdadeiramente nobre, segundo a insuspeitada escala do padre Antonio Vieira, para quem a legítima fidalguia são as nossas ações.

A senhora tem razão em ser brava, uma bondade boazinha não sobrevive neste mundo cão. Nunca mais a vi. No entanto, jamais esqueci o seu gesto. A bondade me estraçalha.
 
 

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