Correio Braziliense
postado em 11/03/2020 04:07
Desde que entrou em vigor a Lei do Feminicídio, há cinco anos, 109 mulheres morreram em contextos de violência doméstica no Distrito Federal. A maioria, assassinadas em casa, por companheiros ou ex-maridos motivados, em mais da metade dos casos, por ciúmes ou sentimento de posse. Jovens, mais velhas, de diferentes classes sociais, moradoras de áreas nobres ou de regiões afastadas do centro. Nenhuma condição se mostrou capaz de impedir os crimes. Todas foram vítimas do machismo.
Os dados, de levantamento obtido com exclusividade pelo Correio, são resultado da análise de 101 dos feminicídios que ocorreram na capital federal entre 9 de março de 2015 a 31 de janeiro de 2020, realizado por meio da criação da Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF), da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal.
Para Anderson Torres, secretário de Segurança Pública, é necessário ajuda de toda a sociedade para coibir esse tipo de crime, além de esforços para mudar a cultura de violência. “Precisamos que a sociedade mude, e a Secretaria está avançando nisso. O que pensamos é na conscientização das crianças e dos jovens, mudando a perspectiva para o futuro. A nossa geração é mais difícil. Vemos isso nas estatísticas. São números que chocam e crimes bárbaros”, acrescenta.
O estudo mostra ainda que 79,2% das vítimas de feminicídio não haviam registrado ocorrência pela Lei Maria da Penha nas delegacias. Dessas, 64% sofreram agressão antes do assassinato. Além disso, depoimentos de familiares, de amigos e de vizinhos também expuseram que 61,4% dessas vítimas viviam um ciclo de violência.
Por isso, Ana Cristina Melo Santiago, ex-chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), atualmente à frente da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), frisa a importância das denúncias por parte de terceiros, mas também ressalta a necessidade de a própria vítima tentar dar o primeiro passo. “Nós temos a Lei Maria da Penha, que estabelece uma rede de ajuda e enfrentamento à situação, não é apenas a punição. Essa mulher precisa entender que denunciar não é necessariamente um pedido de divórcio, essa é uma decisão única de cada uma. Ela precisa enxergar que está em um contexto de vulnerabilidade e precisa de ajuda. Se, posteriormente, ela entender que deve se separar, tudo bem. Se não, também não há problema. Não cabe a nós esse questionamento”, afirma.
“Temos uma naturalização e banalização da violência. Sabemos que nenhum relacionamento íntegro e harmonioso se torna, do dia para a noite, violento. Os sinais estão ali, mas a mulher vai relevando. É o ciúmes exacerbado sobre a roupa que a mulher usa, com quem ela se relaciona e o que faz. Em meio a essa situação, se escuta as justificativas: ‘Ele tem um temperamento difícil’, ou ‘Ele só está mostrando que se importa’. Os conflitos precisam ser resolvidos de forma saudável, e não pela submissão da mulher’. Isso não pode ser aceito”, completa a delegada.
Nesse sentido, Ana Cristina destaca ser preciso desconstruir a validação da mulher sob a ótica masculina, que culmina em preconceitos de que mulher com valor é casada e tem filhos, por exemplo. “Mas é preciso romper com os ideais arraigados e as expectativas criadas em nós desde pequenas. Sabemos o quão difícil é para uma mulher ultrapassar essas barreiras, mas é preciso. Isso vale para todas, pois a violência é cultural, perpassa classes econômicas, cor e idade”, sustenta.
Protocolo de ação
Desde 8 de março de 2017, a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) passou a usar o protocolo de enquadramento das mortes violentas, suicídios e desaparecimentos de mulheres no crime de feminicídio. A ação estabelece uma forma de apuração e, em homicídios, perícias específicas nos corpos e locais dos crimes, realizadas por especialistas dos institutos de Medicina Legal (IML) e Criminalística (IC).
De acordo com Ana Cristina Santiago, o protocolo do Distrito Federal é pioneiro. “Temos ótimos resultados, que possibilitam a finalização do inquérito policial em uma média de 40 dias. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública) pegou o modelo do protocolo e vai submeter a análise para adoção em todo o Brasil”, afirma.
Também com o objetivo de reduzir o número de crimes, após análise estatística das regiões com maior índice de violência doméstica, a Polícia Civil pretende abrir o novo Complexo Regional de Polícia, em Ceilândia, que funcionará na atual 15ª Delegacia de Polícia (Ceilândia Centro). Assim, a cidade terá, além de uma Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, um Instituto de Medicina Legal.
"É preciso romper com os ideais arraigados e as expectativas criadas em nós desde pequenas. Sabemos o quão difícil é para uma mulher ultrapassar essas barreiras, mas é preciso. Isso vale para todas, pois a violência é cultural, perpassa classes econômicas, cor e idades”
Ana Cristina Melo Santiago, ex-chefe da Deam, atualmente à frente da DPCA
Números do DF
109
Total de feminicídios
Motivação
50,8% - Ciúme/posse
29,5% - Brigas
4,9% - Não aceitou o término
4,9% - Em apuração
1,6% - Desavenças
1,6% - Traição/vingança
3,84% - Outros
Onde morreram
Casa — 71,3%
Espaço público — 21,8%
Outros — 5%
Tinha medida protetiva?
Não — 79,2%
Sim — 20,8%
Como morreram
Arma branca — 48,5%
Arma de fogo — 21,8%
Agressão — 13,9%
Asfixia — 10,9%
Fogo — 4%
Relação com o agressor
Marido/namorado — 61
Ex — 22
Filho — 3
Outra relação/desconhecido — 7
Em apuração — 4
Relatos de violência
de terceiros?
Sim — 61,4%
Não — 34,7%
Em apuração — 4%
Fonte: Secretaria de Segurança Pública do DF - Dados de 9 de março de 2015 a 31 de janeiro de 2020
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.