Marilene Almeida*
postado em 16/03/2020 06:00
Pesquisa feita pela Kantar WorldPanel — empresa especializada em dados, insights e consultoria —mostra que o Brasil é o país com mais tipos de cabelo no mundo. A maioria consiste em variações de fios cacheados e crespos, que representam 51,4% da população, de acordo com o levantamento. Já os dados da parceria entre o Instituto Beleza Natural e a Universidade de Brasília (UnB) calculam índice de 70%.
A estudante de ciências contábeis Cláudia Nascimento Bezerra, 19 anos, conta que, na juventude, realizava todos os procedimentos possíveis para manter os fios lisos, de relaxamento a progressiva e o que mais houvesse de novidade. “Eu tinha vergonha do meu cabelo. Por ser crespo, não havia controle. Então, quando alisava e a raiz crescia, ficava uma moita em cima. Quando decidi cortar, era bem armado e as pessoas sempre me mandavam arrumar, porque, no olhar delas, não estava bonito.”
A jovem diz que sofria e ainda sofre preconceito, mas não explícito: sente os olhares de desaprovação e de nojo. Percebeu, no entanto, que não aceitar o próprio cabelo como é só estava afetando a ela mesma. No momento em que alisava os fios, até se sentia bem, mas, ao passar duas semanas, a raiz aparecia, o que fazia a autoestima cair. Resolveu, então, cortar sozinha o cabelo e se assumir crespa.
Essa opção veio acompanhada de uma tonelada de inseguranças e de medo. Por anos, Cláudia alisou o cabelo buscando a adequação aos padrões sociais dominantes e até mesmo por dificuldade de encontrar nos salões de beleza produtos específicos para as mechas crespas. Hoje, contudo, diante de uma demanda cada vez maior, a oferta de serviços para esse público cresce também. Familiares ficaram em choque com a mudança, mas logo perceberam que foi um ato de coragem e que Cláudia ficou bem mais bonita e empoderada. Após mudar, o visual, afirma que se sente livre, pois as amarras foram cortadas.
Libertação
Libertação
Atender esse público foi o objetivo de Esther Ferreira Onaya, 20 anos, ao criar o salão de beleza Studio afro Hairstyles Ateliê, em novembro de 2019. A jovem decidiu entrar no ramo porque, desde pequena, gostava de mexer com cabelos. Aos 15, fazia tranças por lazer. Dois anos mais tarde, viu a necessidade de ter uma renda própria, pois estava morando sozinha e desempregada.
No início, atendendo em domicílio, conheceu muita gente, rodando Brasília e o Entorno. Foram experiências boas e ruins. Algumas pessoas sequer ofereciam um copo d’água. “Não valorizam o nosso trabalho, querendo pagar menos por achar que não vale. Isso é muito preconceito com quem é trancista. Menosprezam muito esse serviço por ser de cultura e história negra, pensam que somos coitadas. Mas nós existimos e queremos respeito”, reivindica.
Esther conta que pensou em desistir por diversas vezes, mas, no fim do ano passado, conseguiu abrir o próprio espaço, em Ceilândia. “O nosso trabalho não é só pelo dinheiro, é também uma ajuda para devolver a autoestima do povo preto. Nós começamos a alisar o cabelo desde criança, nossa estética era vista como algo feio, que não devia existir”, observa. “O meu ateliê tem como foco fazer as meninas e meninos negros se acharem lindos, com todos os seus traços, e conhecerem a própria história e se orgulharem disso. Por isso, não trabalho com químicas, alisamentos e alongamentos que comprometam de alguma forma o cabelo natural dos meus clientes”, completa.
Os relatos de clientes que acham os cabelos feios e usam termos pejorativos para tratá-los, como bucha e bombril, são inúmeros. “Mas eu não as culpo. Isso é resultado de várias vivências racistas que elas tiveram, por acharem que bonito é só o branco do cabelo liso e de traços finos”, afirma a trancista. “Antigamente, por ter seu cuidado invisibilizado, não existiam marcas e empresas com produtos voltados para crespos, restando apenas cremes e shampoos destinados a cabelo liso, cacheado, ou aos quimicamente tratados. Era bem difícil a gente se sentir contemplada. Por isso, é importante a representatividade, começando pelas redes sociais, nosso ciclo de amizade, a gente conviver com pessoas reais, que nos representam. Isso é muito importante para a nossa aceitação.”
* Estagiária sob supervisão de Mariana Niederauer
Crescimento
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em sete anos cresceu em 32% a população brasileira que se considera negra. O estudo mostrou que, entre 2012 e 2018, os autodeclarados pretos e pardos aumentaram quase 5 milhões no país.
Três perguntas para Ana Paula Morais, psicóloga, também tem cabelo crespo e passou por transição
O cabelo, para algumas mulheres, é a parte mais importante do corpo. Para outras, nem tanto. Como isso pode afetar a autoestima de uma pessoa?
O cabelo é uma parte das características físicas de uma pessoa e as características físicas constituem, também, quem aquela pessoa é. Por exemplo, quando a nossa aparência é constantemente vista como negativa, isso impacta na forma como nos vemos, especialmente se a aparência não estiver dentro do que é classificado como a norma. Imagine uma pessoa negra que é tratada como se não pertencesse a essa sociedade, como se a própria existência fosse um erro. O apontamento de seu cabelo como algo feio ou inapropriado comunica a percepção do outro e pode gerar questionamento sobre a autoimagem.
Por que nos importamos tanto com a opinião alheia sobre o nosso estilo?
É importante fazer uma diferenciação entre o que é entendido como estilo e o que são características pertencentes à pessoa. Ter um cabelo afro, por exemplo, não é modismo, é constituinte do fenótipo negro. É muito diferente a escolha entre que tipo de calça usar e que tipo de cabelo ter, até porque a noção de possibilidade de escolha não é óbvia dependendo do sujeito de que estamos falando. Frequentemente nosso “estilo” é pressuposto, é esperado que sejamos de tal ou tal maneira, de acordo com nossa aparência física. Sobre a importância da opinião alheia, o olhar do outro participa da nossa constituição psíquica desde o início da vida. Segundo o psicanalista Donald Winnicott, as bases da identificação primária são o olhar e ser visto. Vamos construindo quem somos e atribuindo valor a ideias a partir das relações sociais.
Qual a importância do afeto para a aceitação?
A mudança do paradigma de ser humano — homem branco — envolve a afirmação da negritude. É por meio da revisão da construção ideológica do que é ser negro que o significado disso para cada sujeito pode ter impactos mais positivos. Apenas uma mudança na percepção de si, saindo do paradigma da branquitude, pode favorecer uma valorização adequada de quem somos. Trocar experiências com quem está disposto a pensar a negritude pode ser um caminho na melhora da autoestima. Afeto, vulnerabilidade e acolhimento podem ser aliados na reconstrução da identidade negra. Esse é um cuidado que pode vir dos pares, familiares, profissionais da psicologia, mas o importante é estar perto de pessoas que respeitem sua individualidade e identidade. Que tenham uma postura de valorização do outro, em vez de depreciação por qualquer característica física ou psíquica. Com mais experiências de acolhimento do que de precisar se defender, o sujeito negro tem mais chances de construir um discurso sobre si e, com isso, desenvolver autonomia e então criar um modelo identitário saudável.
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