Há uma Brasília impregnada no olfato, no paladar e na imaginação. Há uma Brasília de sabores, gostos e uma saudade boa. Há uma Brasília que é muito mais que a imponência do traçado de Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Há uma Brasília feita da história não-oficial. Sem registro nos livros. Sem heróis. Sem políticos. Nem salvadores da pátria. Há uma Brasília que perambula pelas esquinas (sim, Brasília tem esquinas), pela memória, pelo cheiro, pelo inusitado, pela embriaguez dos sentidos.
E é essa Brasília, seguramente, a mais importante das Brasílias. A mais gostosa. A Brasília feita de lembranças. De saudade. De cheiros e sabores guardados. De pequenos contos. De segredos. De causos inesquecíveis. De grandes e anônimos personagens. De uma gente contadora de histórias. Histórias que ajudam a compreender o ritmo e a cadência da cidade. E explicam sua existência.
O Correio Braziliense mostra hoje como nasce uma cidade. Não aquela feita de concretos e monumentos. Mas a que habita em cada um de seus moradores. Na mais remota lembrança. Naquilo que a diferencia. E a faz apaixonadamente singular. Histórias de gente que fez de cada gesto, cada detalhe o hábito de se identificar com o lugar onde mora.
Como comer o milho da Água Mineral e lambuzar-se com a manteiga que escorre dele. Devorar o quibe do Beirute. Se estiver saindo do forno, melhor. Parar na Rodoviária e pedir um pastel com caldo-de-cana da Viçosa. E a carne-de-sol do Xique-Xique, aquele restaurante numa esquina da 107 Sul…
Impressionante é o gosto que a pizza de mussarela da Dom Bosco deixa na memória de quem passou — e passa — por lá. Diz o ditado que vir a Brasília e não comer o acarajé da Torre de Televisão, feito por dona Evilásia (uma jovem senhora de 80 anos ‘‘movida a dendê e uma dosinha de cachaça’’, como ela mesma, às gargalhadas, se define), é pecado mortal.
E o cachorro-quente que resiste há quase duas décadas, numa barraquinha de esquina da 405 Sul? Por lá, passou uma geração inteira. Meninos e meninas que hoje levam seus meninos e suas meninas para comerem o mesmo pão com salsicha e batata palha.
Atire a primeira pedra quem nunca comeu — ou ouviu falar — da feijoada do Afonso, que sobreviveu por 35 anos, em mesas espalhadas no meio da rua, na 506 Sul (pela W2). Ou quem nunca devorou os pedaços de melancia e de abacaxi do seu Merenda, no Setor Comercial Sul. E o pão de queijo da 506 Sul, que a menininha — hoje mulher de 40 anos — comia ao sair da aula de balé, na Norma Lília?
As recordações podem também estar no quebra-queixo do homem conhecido apenas como seu Zé. Ele percorria a cidade com a bandeja do doce na mão, gritava para anunciar que estava chegando e arrastava a criançada. Nunca mais seu Zé foi visto. De vez em quando ainda se consegue ver um ou outro vendedor andando sem rumo, sem prumo…
Nascida planejada e cartesiana, Brasília subverteu-se. Subverteram-na. Assumiu sua cara. Seus cheiros, sabores e cores. Seus defeitos. Virou normal. Menos concreta. Mais humana. Recheada de emocionantes histórias de gente. De boas recordações. Brasília já tem gosto. Um delicioso gostinho de saudade. Qual o sabor que ficou — ou está — impregnado na sua memória?
O milho da Dona Maria
O milho da Água Mineral tem história. E é impossível calcular quanta gente já o devorou. E quanta gente continuará se lambuzando com a manteiga derretida que escapa dele. Sim, o milho da Água Mineral é especial: quem gosta, pode colocar manteiga. Há 43 anos, ele está no mesmo lugar, na mesma casinha, na mesma panela de ferro. E a dona dele, a baiana Maria Santana, 80, faz a mesma coisa todos os dias, para a alegria dos freqüentadores do parque. Alegria da estudante de agronomia Ianelli Sobral Loureiro, de 28 anos. ‘‘É o gosto da minha infância. Água Mineral me lembra milho’’, emociona-se.
Hoje, Ianelli sai da QI 21 do Lago Sul e leva o filho Iuan, de dois anos, à Água Mineral. Motivo? Comer o milho de dona Maria. O gosto ficou impregnado na memória da estudante. Ali, até os macacos disputam os sabugos deixados na lixeira.
A carne-de-sol do Xique-Xique
Tarde de quarta-feira. De batom impecavelmente vermelho, cabelos bem escovados e grandes óculos escuros, a aposentada Zilah Bastos Seabra, de 84 anos, solteira, sem filhos, saboreia elegantemente mais um pedaço de carne-de-sol do Xique-Xique, na 107 Sul. ‘‘Sou paulista e a primeira vez que comi carne-de-sol foi aqui’’, diz ela. Hoje, Zilah tem mesa cativa — a de número 1 —, no restaurante que freqüenta há 25 anos e paga a conta no final de cada mês.
Acompanhada da técnica de enfermagem Maria de Fátima Pereira, uma cearense de 47 anos que cuida da aposentada, Zilah chega pontualmente às 13h ao Xique-Xique. Sentam-se à mesma mesa. Chamam o mesmo garçom. E, geralmente, escolhem a tradicional carne-de-sol com manteiga de garrafa. ‘‘É o que me lembra a quadra, a cidade, o gosto dessa cidade’’, diz Zilah.
O cachorro-quente do Landi
Para os irmãos Thayse, de 18 anos, e Luiz Gustavo Martins Lameira, 21, as melhores lembranças de Brasília moram numa esquina da 405 Sul, na carrocinha de cachorroquente. Eles cresceram freqüentando o barraquinha do Landi, na quadra há quase duas décadas. ‘‘Quando a gente era criança, toda a família vinha lanchar aqui. O gosto até hoje é o mesmo. Ele não mudou nada’’, recorda-se Thayse, com saudade. ‘‘Foi a fase da molecada e da minha adolescência. A gente comia, anotava no caderninho e depois meu pai vinha pagar’’, emenda Luiz Gustavo.
Depois do futebol, a turma já sabia para onde ir. ‘‘A gente corria pra comer cachorro-quente’’, lembra Luiz Gustavo. E saboreia o gosto de infância que ficou na sua boca: ‘‘O pão e a batata são especiais. É ele mesmo quem faz. E não há em Brasília cachorro-quente igual ao dele’’.
O quibe do Beirute
Quando ela chegou pela primeira vez à cidade, há uma década, o marido — então namorado e funcionário da embaixada da Tailândia —, a levou de cara para a frenética e revolucionária 109 Sul. Fazer o quê? Adivinhem ... ‘‘Experimentei o quibe do Beirute e desde então o associo ao gosto de Brasília, à cara da cidade. É o que ficou na minha memória. É o melhor quibe do mundo’’, extasia-se a mineira Maria Lúcia Alves Evangelista, uma dona-de-casa de 38 anos.
Hoje, Maria Lúcia leva a filha Vitória, 8, para comer o mesmo quibe, na mesma mesa de madeira. ‘‘Pego a minha filha na escola e, antes de chegar em casa, no Sudoeste, passo pela quadra. Se vejo uma vaguinha, é sinal de que tenho de parar. Aí, estaciono e eu e minha filha vamos comer quibe. Ela adora e eu também. É a coisa mais tradicional que acho na história da cidade’’, empolga-se Maria Lúcia
As frutas do setor comercial
Quanta falta seu Merenda faz! Os pedaços de melancia e de abacaxi que vendeu durante anos, no Setor Comercial Sul, consumidos ali mesmo, no meio da barulheira e do vaivém de uma multidão enlouquecida estão até hoje na lembrança do cearense Gerson Leite, um vendedor de 53 anos. ‘‘Foram anos, todos os dias, comendo aqui. Se tô longe e vejo uma melancia, a única coisa que me vem à mente é o Setor Comercial...’’
Seu Merenda, um velho de cabelos brancos e risada farta, não está mais ali. Sumiu sem deixar rastro. Mas o cheiro das suas frutas impregnou o local. Vender melancia e abacaxi hoje ali é proibido pela fiscalização, embora alguns insistam. ‘‘Quando a gente vê um carrinho de frutas, a lembrança vai logo nele’’, diz Gerson. E revela: ‘‘Era gente de terno, gente pobre, gente rica, todo mundo comia melancia em pé. O Setor Comercial Sul tem a cara e o cheiro das frutas do seu Merenda.’’
O pastel da Viçosa
O pastel de carne e de queijo, junto com o caldo-de-cana da Viçosa, na Rodoviária do Plano Piloto, é a melhor e mais saborosa lembrança que o aposentado José Hermínio da Silva, de 50 anos, carrega da cidade. ‘‘Eu trabalhava à noite, e, quando saía, antes de pegar o corujão pra chegar no Gama, parava aqui. Era sagrado, todos os dias. Brasília pra mim tem cara de caldo-de-cana e pastel da Rodoviária’’, revela.
Aposentado e morando em Paracatu, Minas Gerais, a primeira coisa que José Hermínio faz quando chega a Brasília é parar na pastelaria Viçosa. ‘‘Desembarco e venho correndo pra cá. Chego doido pra matar a saudade’’, conta. No fim da manhã de quarta-feira, José comeu três pastéis — dois de carne e um de queijo. Lambeu os lábios. Sorveu. E saiu dali, depois de um copo de caldo-de-cana, em estado de graça: ‘‘É um gosto que só sinto aqui...’’
O acarajé de Dona Evilásia
Entre uma derramada e outra de azeite e conversas intermináveis com a dona do dendê, o artista plástico e pioneiro Plínio Lage, mineiro de 68 anos, morador da Vila Planalto, come mais um acarajé de dona Evilásia, uma jovem senhora às vésperas de completar 80 anos, movida a pimenta e há 35 na Torre de Televisão. ‘‘Quando eu tô fora daqui e vejo um acarajé, me lembro logo de Brasília. Volto pra cá em pensamento’’, conta ele
Há 30 anos, pelo menos uma vez por semana, Plínio dá uma paradinha na barraca de dona Evilásia. Criou os cinco filhos comendo do mesmo acarajé e hoje traz os oito netos para a farra na Torre. ‘‘Moro aqui há 48 anos, vim antes da inauguração. O acarajé me faz recordar um pouco a minha juventude. ‘‘Eu posso estar até na Bahia, mas se sinto o cheiro ou como um acarajé, a primeira coisa em que penso é em Brasília’’, diz, orgulhoso.
A pizza da Dom Bosco
Na Rua da Igrejinha (107/108 Sul), o sabor da fatia de mussarela da Pizzaria Dom Bosco invadiu os sentidos do jovem João Alberto Gonçalves de Almeida desde que ele chegou à cidade, no início da década de 70. Hoje, aos 53 anos, ele leva o filho Leandro Miranda, 24, para comer a mesma — a mesminha — fatia de mussarela, coberta de orégano e tomate, que devorava na juventude. ‘‘Brasília começou aqui. Esse sabor é único’’, declara, comendo mais uma fatia. E emenda: ‘‘O charme é exatamente este: comer em pé’’.
Num velho balcão creme, sem cadeiras, num lugar com cara de botequim, pessoas param para comer a pizza. Deliciam-se com o mesmo e único sabor de quase quatro décadas. Histórias são contadas. Amizades feitas. Namoros desfeitos. ‘‘Hoje, quando tô apressado, paro aqui e levo as fatias pra casa. A gente nem chama de pizza de mussarela, mas a pizza da Dom Bosco’’, conta João Alberto.
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