Estas matérias foram publicadas originalmente nas edições de 14 a 17 de setembro de 1996 e 17 de agosto de 1997 do Correio. A republicação faz parte do projeto Brasília Sexagenária, que até 21 de abril de 2020 trará, diariamente, reportagens e fotos marcantes da história da capital. Acompanhe a série no site especial e no nosso Instagram.
Chega de mortos e mutilados produzidos em série, como se vivêssemos em uma guerra permanente contra nós mesmos. Como se tudo não passasse de uma fatalidade, como se em algum lugar estivesse escrito que viemos aqui para matar ou morrer. Não, não está escrito em lugar nenhum. Não foi para isso que viemos.
Chega de ver da janela mais uma vida roubada pelo trânsito e ter apenas a criminosa reação do alívio: afinal, não aconteceu conosco, não aconteceu com ninguém que a gente ama, ainda não foi desta vez. Amanhã é dia de dizer que não vamos mais esperar pela nossa vez.
Amanhã é dia de chorar os 78 mortos que nossa imprudência e nossa omissão fizeram num único mês de agosto. Mas, acima de tudo, de celebrar a vida. De redescobrir como pode ser bom viver em paz, uma sensação já quase perdida na memória ou nos nossos melhores sonhos.
Amanhã é dia de sair, às 15h, de perto do Cine Brasília, na 106 Sul, e caminhar, talvez alguns dos quilômetros mais importantes de nossas vidas. Porque ao fim dessa caminhada, não seremos mais os mesmos.
Nós, a comunidade de Brasília, estaremos assumindo pela primeira vez em nossa história uma posição de vanguarda diante da nacionalidade. A Caminhada pela Paz no Trânsito é um movimento cívico dos mais importantes - tão ou mais que as lutas pela redemocratização que tantas vozes alimentaram em todo o país nos anos 80.
A diferença é que Brasília, naquela ocasião, caminhava a reboque do processo. Hoje, o impulsiona. Lutamos pelo mais elementar dos direitos humanos: o de ir e vir, com segurança. O trânsito é a nossa guerra civil não declarada, que mata e mutila.
Amanhã é dia de dizer que a guerra pode acabar. E que estamos dispostos a acabar com ela.
Hoje é dia de paz (15 de setembro de 1996)
Cenário de inúmeros acidentes, o Eixão levanta hoje a voz contra a violência no trânsito
Será um protesto, mas os participantes vão experimentar um sabor especial de festa. A Caminhada pela Paz no Trânsito que se iniciará hoje às 15h, no Eixão Sul, na altura da 106, tem inúmeros motivos para se transformar em um manifesto inesquecível.
Nessa festa o passe é livre. As diferenças vão ser barradas na porta. Sindicalistas e empresários, artistas e religiosos, velhos e crianças, homens e mulheres formarão uma grande massa. Da CUT à Federação do Comércio, do padre aos artistas do humor escrachado, de autoridades como o governador Cristóvam Buarque até o mais ilustre cidadão desconhecido, todos vão das as mãos.
Participa quem quiser. Bem-vindo quem vier. Os organizadores estarão à espera de todos de braços abertos. Dez mil balões azuis e brancos voarão pelos céus dando início à caminhada. A banda Choro Livre interpretará o som de clássicos de Pixinguinha, Ernesto Nazareth e Jacob do Bandolim. E, no início da concentração, a banda da Polícia Militar dará os primeiros acordes.
Alegria sim, esquecer o propósito jamais. Dezenas de faixas e cartazes e milhares de panfletos e adesivos serão distribuídos aos participantes. Neles estarão impressas palavras que lembram a todo instante que o momento é de luta.
Performances ensaiadas por atores reforçarão à idéia. Como a dos três integrantes do grupo Udi Grudi, que escolheram trajes de morte. Caveiras enormes andarão em perna-de-pau. O Coro Sinfônico Comunitário vai à caminhada, mas em silêncio. Entre 350 e 400 integrantes estarão na concentração, vestidos de branco e com o uniforme do coral.
Apesar do colorido e da descontração que devem marcar a caminhada no Eixão Sul, certos manifestantes dificilmente conseguirão apagar as marcas da saudade deixadas por aqueles que se foram, ou deixar de lamentar os prejuízos causados pelo trânsito de Brasília às pessoas que ele mutilou.
É por isso que caminhada deve ser dada, a passos firmes, em direção a mudança total de comportamento de todos aqueles que decidiram aderir ao protesto.
Não adiantará apenas belas palavras e poemas se quem se comprometeu com o movimento pela paz no trânsito não se conscientizar totalmente de que é hora de frear e apertar o acelerador dentro dos limites racionais, estabelecidos pela engenharia e pelo bom senso.
No encerramento da caminhada, que acontecerá nas imediações do Hospital de Base de Brasília (HBB), o toque final. Um ato ecumênico, com participação do bispo auxiliar de Brasília D. Raimundo Damasceno, e do pastor luterano Renato Kunhe, levarão palavras de conforto e apelos para pôr fim ao derramamento de sangue nas pistas.
Campanha mobiliza toda a imprensa (15 de setembro de 1996)
Emissoras de rádio e televisão colocam nos noticiários informações sobre a passeata de hoje no Eixo Rodoviário
A Campanha pela Paz no Trânsito ganhou espaço nas telinhas de quase todas as emissoras de televisão e rádios de Brasília.Pega no lago
Campanha
Notícia até no Japão
Símbolo agora vira mania
A caminho da paz nas ruas (16 de setembro de 1996)
Esperança em um trânsito melhor foi o sentimento que marcou caminhada no Eixão Sul ontem à tarde
Dez mil balões azuis e brancos invadiram o céu de Brasília. nas mesmas cores, 25 mil pessoas - segundo a Polícia Militar - caminharam três quilômetro, a passos lentos, para mudar o trânsito da cidade. Políticos sem direito a discurso, donas de casa, deficientes físicos, crianças, muitas crianças, artistas, idosos, religiosos, estudantes e militantes das mais diversas causas fizeram uma marcha cívica jamais vista em qualquer canto do país.
A concentração começou às 15h no Eixão, na altura da 106 Sul. Mas teve gente que chegou ao meio-dia. Às 15h40, o asfalto preto e calorento ficou branco. Os primeiros a chegar foram os estudantes de escolas públicas e particulares de todo o DF. Aluno do Sesi de Taguatinga, Jefferson Gomes, 15 anos, deixou a pelada para brincar de ser cidadão. “A gente mostra nessa cidade linda. O trânsito não é um ringue de boxe”, disse o futuro motorista.
As faixas refletiam o bom humor e a esperança de quem saiu de casa para reclamar contra a violência no trânsito: “Não deixe sua vida passar em alta velocidade”, “Pare com respeito, olhe com prudência, siga com amor”. O número de pessoas que foram ao Eixão era quase duas vezes e meia a capacidade do ginásio Nilson Nelson.
Alerta
“A caminhada é um alerta, um acordar, um despertar. Ou vai hoje (ontem), ou não vai nunca”, conclamava a artista plástica Marlene Rezende, com a foto de uma menina morta no trânsito no peito e um sorriso nos lábios. “Estou achando muito legal. Os idosos são os últimos no trânsito” apoiava Lúcia Barbosa, 83 anos, acomodada num banquinho que trouxe de casa.
A pena quebrada, fruto de um acidente sofrido no dia 30 de agosto, não impediu que a estudante Yara Azambuja homenageasse o filho abortado em consequência da fatalidade. “Era um amor muito grande que eu tinha por uma pessoa que fazia parte de mim”, disse, chorando.
Mas as bandas da Igreja Adventista, da Cultura Racional e da Polícia Militar espantavam a tristeza. “É importante participar. A lua é que está quente”, reclamava o sargento Mendonça, da PM, fazendo uma ironia com o forte calor da tarde de ontem. Um carro de incêndio do Corpo de Bombeiros resolveu o problema, com um jato de água disputado por gente de todo tamanho.
No trajeto, planos para um futuro melhor. A presidente da Associação das Mulheres de Negócios, Mônica Nóbrega, anunciava: “Vamos fundar a Associação das Mulheres pela Defesa do Trânsito”.
Balões
Depois de 45 minutos de caminhada, a corrente humana parou para ver os balões subindo pelo ar, na altura do Hospital de Base. O gerente de Fiscalização do Detran, José Araújo, comemorava: não estava mais sozinho. “Vocês do Correio plantaram uma sementinha. Agora vamos semear”, dizia, inspirado. Comovido.
No final, uma dúvida. Será que a mobilização para diminuir a violência nas pistas acaba aqui? Um cartaz não deixava esquecer que a luta está apenas começando. Dizia: de 1993 a 1996, foram 297.819 acidentes, com 23.901 mortos e 177.148 feridos.
Lembrando três anos e nove meses da filha, Jordana, a jornalista Maria José de Castro lamentou: “Quem mais deveria estar aqui não está: os jovens, que são os motoristas mais imprudentes”.
No final, chorinho, teatro e mensagens religiosas de exortação à paz no trânsito, sobre o carro de som do sindicato dos professores. “Fiquei emocionado. Vamos dar total apoio a essa campanha e vamos repassá-la para todo o país”, avisou o coordenador do Programa da Redução de Acidentes do Ministério da Justiça (PARE), José Roberto Dias, que rebatizou a caminhada. “Esse foi o Dia Nacional de Vacinação contra a Violência no Trânsito”.
Trânsito mata 40% menos em um ano (17 de agosto de 1997)
Campanha lançada pelo Correio fez cair a violência nas ruas do DF
Lançada pelo Correio Braziliense no dia 18 de agosto de 1996, a campanha pela paz no trânsito cumpriu e está cumprindo o seu objetivo. Os acidentes diminuíram o número de mortes nas ruas de Brasília caiu em 40%. Segundo os especialistas, 20 vidas foram salvas a cada mês.
Barreiras eletrônicas, pardais, radares móveis e velocidade limitada: muitos reclamam, mas essas providências já adotadas em vários países do mundo e hoje copiadas em muitas cidades brasileiras, mostraram-se eficientes.
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