Cidades

Crônica da Cidade

Carta de amor

Correio Braziliense
postado em 23/03/2020 04:28
Querida Alice,

A lembrança do dia em que você viu o mundo lá fora pela primeira vez permanece viva em minha memória. Foi há poucos meses, dois dias depois do seu nascimento. Nós três, eu, você e papai, nos lançamos no desconhecido de uma relação nova para todos. Nascemos de novo, junto a você.

O que não podíamos imaginar é que esse mundo, que você viu pela primeira vez, naquela tarde de agosto, surpreenderia, a nós também, em tão pouco tempo. A notícia de que um vírus altamente contagioso havia parado uma cidade no outro lado do planeta chegou no início do ano.

Três meses depois, estamos aqui, parados no tempo, aguardando o pior passar. Dentro de casa, reclusos, como fizemos nos seus primeiros meses de vida, com o objetivo de proteger a sua saúde.

Agora, no entanto, o ato é uma questão de cuidado com o outro. Com os nossos vizinhos, com os funcionários do prédio, que bravamente nos auxiliam na tarefa de prevenir a transmissão da doença, e de todos aqueles que não podem parar as atividades nem trabalhar em casa.

Nessa batalha, você é quem tem a vantagem. Seu frágil sistema imunológico parece conhecer os caminhos para combater essa infecção que parou o mundo. Em vez de mandar um exército, mostraram cientistas, ele mata o vírus devagar, o que permite ao corpo ter forças para encarar a doença e vencê-la mais rapidamente, praticamente sem sintomas, pelo que se sabe até agora.

É aí que entra a sua mais nobre contribuição. Mesmo você, que corre menos riscos diante dessa devastadora pandemia, precisa ficar em casa. A vida está te ensinando, logo cedo, o que muitos de nós demoramos demais ou nunca aprendemos: não podemos andar sozinhos. Nossas ações têm impacto na vida de outras pessoas.

Por ironia, tudo isso te ensinará também o valor do abraço e de um carinho mais próximo de quem a gente ama e quer bem. Os instrumentos criados graças à tecnologia nos afastaram cada vez mais um do outro e nos levaram a criar universos virtuais utópicos que têm contribuído para adoecer as nossas sociedades. Neste momento, isolados por necessidade, e não por opção, vemos o quanto precisamos do contato real.

Você viverá para ver o momento mais difícil da história da humanidade desde que uma coisa muito feia aconteceu e os seres humanos acharam que era hora de entrar em uma guerra mundial. Terá que abrir mão de algumas das coisas de que mais gosta, como sair à tarde para passear no comércio da quadra, assistir às brincadeiras das crianças no pilotis do prédio, ganhar um cheiro dos titios e das titias, e o colo do biso e das bisas.

Mas eu estou aqui para te dizer que tudo vai passar. Que você ainda ganhará muito colo e que o aconchego dos abraços envolverá seus dias de amor. E, quando isso acontecer, será tempo de os ipês florirem. De mãos dadas, passearemos debaixo do bloco e brincaremos sobre um tapete cor-de-rosa de flores espalhadas pelo chão.

Com carinho,

mamãe.
 

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