Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 28/03/2020 04:06
O salário de Lió

A cada 15 dias, meu pequeno apartamento fica novo em folha graças à Lió, uma diarista muito competente, que limpa os cômodos e guarda as roupas no armário após passá-las e dobrá-las de maneira impecável. Voltar para casa nos dias em que ela esteve ali é uma felicidade. Ajuda até minha saúde mental, dando a sensação de que minha vida é tão organizada quanto o apartamento que encontro após Lió fazer seu trabalho.

Nas rápidas conversas entre a hora em que ela chega e o momento em que vou para o trabalho, aprendi que essa mulher nunca teve medo de trabalho. Quando as quatro filhas eram pequenas, chegou a somar as diárias a um emprego noturno em um restaurante, levando uma rotina em que cabia pouquíssimas horas de sono. Agora, porém, trabalhar anda difícil.

A culpa é do novo coronavírus. Trancados em casa, os clientes de Lió passaram a dispensar seus serviços, segundo ela me contou em uma mensagem de WhatsApp. Como fazemos a cada duas semanas, passamos a combinar pelo celular que dia ela iria lá em casa. Eu disse que olharia minha agenda e daria a resposta em breve. Ela, então, mandou o áudio: "Tá bom, mas por favor, Beto, não deixa de me chamar, porque todos me dispensaram e está difícil viver este mês".

Pelo jeito, eu era o único com intenção de mantê-la trabalhando, até que pessoas próximas passaram a me aconselhar a não fazê-lo. Como tenho mãe idosa, preciso evitar o máximo de contato com pessoas, reduzindo as chances de me infectar, argumentaram. Acabei convencido, mas senti por Lió, imaginando como seria, mais uma vez, dispensada em uma fase tão difícil.

A solução veio em uma descompromissada passagem pelo Instagram. Na rede social, a postagem de uma amiga convidava: "Quer fazer um ato humanitário e que contribuirá muito para reduzir o contágio? Se possível, dispense diaristas, mensalistas e funcionários da sua casa pagando salário. Se você conseguiu ficar em casa, faça essa boa ação e oriente sua funcionária a ficar em casa e não se deslocando em transportes públicos".

Que solução simples para o meu impasse... Transferi o valor de duas diárias para Lió, encaminhei o comprovante do banco para ela via WhatsApp e depois expliquei a decisão de nas próximas semanas não recebê-la em casa. Disse ainda que as diárias de abril estavam garantidas também. Como presente, recebi de Lió uma mensagem de agredecimento e duplo alívio — por saber que aquela parte de sua renda estava garantida e por ganhar, ela também, que também tem mãe idosa, o direito de ficar mais tempo em casa.

Estendo o convite que minha amiga postou no Instagram à cara leitora, ao caro leitor. Hoje, no país, 30 milhões de famílias têm como principal geradora de renda uma mulher. Muitas delas têm o mesmo trabalho de Lió. Simplesmente dispensá-las é abandonar milhões de crianças à própria sorte. É desumano. A responsabilidade, claro, não é de um outro cidadão. O Congresso fez sua parte e acertou quando garantiu alguma renda aos trabalhadores informais, na última quinta-feira. Mas, para muitas famílias, os R$ 600 mensais será pouco. Se você pode ajudar dessa forma, ajude. Estará ajudando a todos nós, acredite.




Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags