Correio Braziliense
postado em 08/04/2020 04:14
Unanimidade inteligente
Nelson Rodrigues formulou a célebre máxima: “Toda a unanimidade é burra”. Está certo que, muitas vezes, a frase é verdadeira, mas nem sempre. Na verdade, Nelson buscou inspiração na peça Um inimigo do povo, do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Na trama, o protagonista, doutor Stockmann, é um biólogo que se torna um herói da pequena cidade natal.
Ele descobre os poderes curativos das águas e o local se transforma em um polo importante de atração turística. No entanto, em decorrência da corrupção, foi construído um sistema inadequado de canalização que provoca a contaminação das águas. Isso pode levar a uma epidemia. O biólogo vive o dilema: contar ou não contar?
A informação provocaria a decadência da principal atividade econômica da cidadezinha. O doutor Stockmann resolve dizer a verdade e de herói é rebaixado à condição de “inimigo do povo”. É uma fábula sobre o princípio de que falar a verdade é mais importante do que ser celebrado. Portanto, a frase de Nelson Rodrigues é inteiramente descabida no caso da polêmica atual sobre a ciência e a ignorância.
Existem situações em que se forjam unanimidades inteligentes. E esse é precisamente o caso da formada pelos cientistas, pelos médicos, pelos infectologistas e pela maioria dos líderes mundiais responsáveis no combate à pandemia do coronavírus. Não é uma convicção que se formou no vale tudo das redes sociais, alimentado pelo sectarismo, pela insciência e pelos robôs.
A decisão pelo isolamento foi forjada a partir dos estudos de profissionais e de instituições que dedicam a vida inteira à pesquisa. Além disso, ela passou e está passando pelo terrível teste de realidade. Temos de aprender alguma coisa com a tragédia da Itália, da França e dos Estados Unidos. Eles não ouviram os alertas dos cientistas.
Assisto na tevê que cada uma das partes envolvidas no debate deve ceder um pouco. Mas a política, os caprichos e as vaidades não têm espaço em uma situação tão grave. O que está em jogo é a vida ou a morte. Não é uma circunstância que permita barganhas com a ignorância e a irresponsabilidade. Isso pode custar muitas vidas e um efeito ainda mais devastador na economia.
Mesmo com as luzes da ciência, a batalha será duríssima. Precisamos construir mais unanimidades inteligentes. As carreatas não legitimam nenhuma decisão obscurantista. Que os inscientes calcem as sandálias da humildade e deixem os cientistas trabalharem em paz. A vida não é negociável.
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