Correio Braziliense
postado em 10/04/2020 04:05
Clarice no caderno
Nas décadas de 1960 e 1970, era comum no Rio de Janeiro os professores pedirem aos alunos que entrevistassem os escritores. E eles povoavam a capital dos cariocas; alguns eram os maiores do modernismo e da história da literatura brasileira: Carlos Drumommd de Andrade, Vinicius de Moraes, Nelson Rodrigues, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector.
Narrei, neste espaço, a tentativa da garota Beth Ernest Dias, futura flautista, de entrevistar Dalton Trevisan. Mas ela só recebeu como resposta um calhamaço de matérias jornalísticas nas quais o Vampiro de Curitiba ressaltava a aversão extrema a qualquer exposição pública.
Pois bem, no livro Todas as crônicas (Ed.Rocco), Clarice reproduz uma dessas entrevistas feitas para um caderno de estudantes. Recomendo vivamente a leitura do tijolaço de mais de 700 páginas. É uma aventura metafísica a partir de situações triviais.
As perguntas são rápidas e as respostas de Clarice, também. Ao ser indagada sobre qual é a coisa mais antiga do mundo, ela responde: “Poderia dizer que é Deus que sempre existiu”. “E qual a coisa mais bela?” Indaga o entrevistador. E Clarice fulmina: “O instante da inspiração”.
Na verdade, Clarice havia dito, em uma das crônicas: “Inspiração não é loucura; é Deus”. O estudante emenda uma pergunta no tema: “E quando Deus criou o universo, não o fez no momento de Sua maior inspiração?” Clarice não foge: “O universo existiu. O cosmos é Deus”.
Ao ser interrogada sobre qual das coisas é a maior, Clarice não tem dúvida: “O amor que é o maior dos mistérios”. “E qual seria o sentimento mais constante?” Clarice gostaria de dar outra resposta, mas aponta: “O medo. Que pena que eu não possa responder: é a esperança”.
“E o melhor dos sentimentos?” “O de amar e ao mesmo tempo ser amada, o que parece apenas um lugar-comum ,mas é uma de minhas verdades.” “Qual o sentimento mais rápido?” “O sentimento mais rápido, que chega a ser apenas um fulgor, é o instante em que um homem e uma mulher sentem um no outro a promessa de um grande amor.”
É impressionante como Clarice se revela mesmo em um questionário para estudantes. Ao ser provocada a nomear qual é a mais forte das coisas, ela diz: “O instinto de ser”. “O que é mais fácil de se fazer?” “Existir, depois que passa o medo.” Ela tinha sabedoria, mas não a do bom senso; e, sim, a de uma vida experimental. “Qual a coisa mais difícil de realizar?” “A própria felicidade, que vem do conhecimento de si mesmo.”
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