Meio ambiente

Ecovilas propõem modelos de organização social para superar crises

Alicerçadas em conceitos de sustentabilidade, comunidades apontam alternativas para lidar com mais segurança diante de dificuldades como as provocadas pela pandemia de coronavírus

postado em 12/04/2020 08:00 / atualizado em 06/12/2023 01:20

2020 Credito : Arquivo Pessoal -  Fundadores do Ecocentro Ipec, o casal de educadores Lucy Legan e André Soares, com a filha, Laila, e o neto Ravi
2020 Credito : Arquivo Pessoal - Fundadores do Ecocentro Ipec, o casal de educadores Lucy Legan e André Soares, com a filha, Laila, e o neto Ravi (foto: Arquivo Pessoal)

A australiana Lucy Legan, 50 anos, não precisa de transporte para se deslocar ao trabalho. Quando está no Brasil, a escritora e professora abre a porta de casa e, com um passo à frente, chega ao escritório: um complexo jardim, onde hortas, pomares e salas para diversas atividades se misturam. Em Pirenópolis (GO), ela e o marido, o educador gaúcho André Soares, 57, lideram o Ecocentro Ipec há duas décadas. A iniciativa visa difundir, por meio de uma série de cursos anuais, ensinamentos de vida sustentável, baseados em conceitos conhecidos como ecovilas, permacultura, bioconstruções e agrofloresta. Em tempo de isolamento social e ameaça de colapso de estruturas do sistema vigente, provocados pela pandemia de coronavírus, o movimento em favor de formas alternativas de organização social ganha incentivo extra.

“Ecovilas podem fazer você se sentir seguro. O apoio da comunidade é um grande benefício de viver assim. Se a população reunir recursos, poderá ajudar a aliviar o medo. Não estou falando de estocar produtos, mas de pessoas oferecendo diferentes especialidades aos vizinhos em momentos de necessidade. Pode ser jardinagem, cuidar das crianças, cozinhar e comunicar, qualquer coisa que a comunidade possa precisar para aliviar o sofrimento físico ou emocional. Além disso, se a ecovila incentivar o plantio de florestas de alimentos e hortas orgânicas, os moradores podem se organizar de maneira ordenada para compartilhar”, explica Lucy Legan, que, nos últimos quatro anos, passa a maior parte do tempo com a família na Austrália, onde mantém o trabalho de educadora ambiental.
De forma rápida, as ecovilas podem ser definidas como comunidades planejadas, onde o saneamento básico, o fornecimento energético, o abastecimento hídrico, a produção de alimentos e a arquitetura urbanística são solucionados com impacto positivo sobre o meio ambiente, com foco nos recursos locais (insumos e mão de obra). As trocas de produtos e serviços são estimuladas entre os participantes, minimizando as necessidades de buscas externas. Não há estimativas oficiais de quantas ecovilas e do contingente de pessoas que viveriam nesses espaços no país. Mas, quase silenciosamente, o ideal que ainda parece um sonho distante para a maioria da população tem conquistado cada vez mais adeptos.
O casal Thais Yeleni e Juno Rocha (C) vivem com os filhos na Ecovila da Lagoa, em Planaltina de Goiás
O casal Thais Yeleni e Juno Rocha (C) vivem com os filhos na Ecovila da Lagoa, em Planaltina de Goiás (foto: Arquivo pessoal/Divulgação)
Após conhecer ecovilas Brasil afora e também em países europeus, o empreendedor social brasiliense Juno Rocha, 42, investiu na consolidação do próprio projeto, às margens da Lagoa Formosa, em Planaltina de Goiás, onde vive com a esposa, a empresária Thais Yeleni, 39, e um casal de filhos. Inaugurada em 2008, a Ecovila da Lagoa dispõe de casas construídas com técnicas naturais, pequenos cultivos de alimentos orgânicos, uma máquina de fabricação de tijolos de adobe e, como atração principal, um inovador tanque com cabo eletrônico para a prática de kite surfe. Segundo Juno, a intenção de viver de forma sustentável pode ser praticada em diferentes contextos.
“A sustentabilidade está no comportamento, não nos materiais. É perfeitamente viável construir uma ecovila dentro de uma cidade, bairro ou condomínio de qualquer cidade. O que precisa é organização coletiva, instrução de conceitos como permacultura, bioconstrução, agricultura biodinâmica e vontade de realizar. Nosso movimento fomenta um desenvolvimento regional, descentralizado, com menor dependência do Estado, de uma forma responsável e utilizando tecnologia de ponta. Qualquer planejamento de assentamento humano deveria contemplar produção de alimentos, saneamento básico local, coleta e utilização de água da chuva, trocas de energia e recursos locais. Você melhoraria a mobilidade urbana e diminuiria uma série de doenças. Só teríamos a ganhar”, comenta o empreendedor.

Autossuficiência hídrica no Jardim de Botânico

2020 Credito - Arquivo pessoal/Divulgação - RETRANCAS: Ecovilas como alternativa para a crise global de pandemia do coronavírus - SergioPamplona.- O arquiteto Sérgio Pamplona e a educadora Mônica Carapeços, do Sítio Nós na Teia
O arquiteto Sérgio Pamplona e a educadora Mônica Carapeços, do Sítio Nós na Teia (foto: Arquivo pessoal/Divulga??o)
Instalados desde 1998 no Sítio Nós na Teia, no Jardim Botânico (DF), o arquiteto e urbanista Sérgio Pamplona, 54 anos, e a educadora e terapeuta ayurvédica Mônica Carapeços, 43, baseiam-se em princípios da permacultura para consolidar um espaço sustentável. O local é autossuficiente no abastecimento hídrico, beneficiando-se apenas do que a chuva oferece, e tem gradativamente ampliado a produção alimentar, além de oferecer cursos. A área total do empreendimento mede 1 hectare e abriga mais cinco pessoas. A crise provocada pela pandemia motiva reflexões do grupo.
“Este momento histórico, uma pandemia, foi um cenário comentado tempos atrás por muita gente. A economia mundial, neste ano, vai para o saco. Tem gente que não fala mais em recessão, mas de depressão, que vivemos pela última vez em 1929, mas agora por motivos completamente diferentes. Talvez, a partir da necessidade, as pessoas comecem a enxergar que a crise é sistêmica. A sociedade tem de aprender a viver dentro dos limites ecológicos. As grandes cidades fugiram completamente a uma escala racional e não sustentam a população. Espero que, durante essa quarenta, as pessoas consigam refletir sobre a diferença entre viver em uma ecovila e em um centro urbano”, comenta Sérgio Pamplona.
O arquiteto permacultor acredita que políticas públicas, que instituíssem o aprendizado de conceitos ecológicos em larga escala, poderiam orientar a população a realizar a urgente transformação exigida em benefício do equilíbrio da vida no planeta. “Quando estava no Ministério do Meio Ambiente e visitava ribeirinhos na Amazônia, pensava que tínhamos de ensinar permacultura para toda aquela gente. O governo deveria abrir turmas em todo lugar. No saneamento, o problema não é se livrar do esgoto, mas, energeticamente, aproveitar os nutrientes que estão disponíveis, de forma sanitária correta, sem criar problemas para a comunidade, e retornar esses recursos para o ciclo de uma forma positiva, como é feito em ecovilas”, explica.

Apreensão com a economia, alento na ecologia

2020 Credito Arquivo Pessoal - O bioconstrutor e secretário de Turismo de São João d'Aliança Geraldo, com a esposa, Marlene Talarico, na Ecopousada Rebendoleng
O bioconstrutor e secretário de Turismo de São João d'Aliança, Geraldo Bertelli, com a esposa, Marlene Talarico, na Ecopousada Rebendoleng (foto: Arquivo Pessoal )

Localizado a 160km de Brasília, o município de São João d'Aliança (GO) é conhecido como portal da Chapada dos Veadeiros. A típica cidade interiorana vinha aproveitando a crescente onda de ecoturismo, após a recente abertura ao público de atrativos naturais, como a Cachoeira do Label – a maior do Centro-Oeste, com 187 metros de altura –, mas há cerca de um mês tem de lidar com pousadas, hotéis e restaurantes fechados, devido à quarentena imposta pela pandemia de coronavírus.
“É um cenário desolador. Parou tudo. Os turistas sumiram e o comércio acabou. Temos de seguir as orientações do Estado, que exige a preservação da saúde neste momento. A polícia precisou de agir em alguns casos de turistas que desobedeceram as recomendações e estavam fazendo festas às margens de córregos e lagos”, conta o secretário municipal de Turismo, Geraldo Bertelli. 
Aos 64 anos, o paranaense que abandonou a profissão de caminhoneiro para se tornar guia turístico e bioconstrutor no nordeste goiano afirma que, diante da atual crise, encontra alento na vida próxima ao Cerrado. Com a esposa, Marlene Talarico, 62, Geraldo mantém há quase 15 anos a Ecopousada Rebendoleng, uma chácara onde recebe hóspedes, planta e cria animais. “Fui dar uma volta na cidade e encontrei algumas pessoas quase desesperadas. Realmente, sinto-me aliviado por ter um espaço onde posso trabalhar ao ar livre e produzir algum alimento. Em um momento como esse, ajuda a manter a sanidade”, comenta.
O bancário Marcio Barros e o filho, Yan, em contêiner usado como abrigo, no Sítio Rupestre, na ecovila Condomínio Habitat, na Chapada dos Veadeiros, no município de São João d'Aliança-GO.
O bancário Marcio Barros e o filho, Yan, em contêiner usado como abrigo, na ecovila Condomínio Habitat, na Chapada dos Veadeiros (foto: Arquivo pessoal/Divulgação)
Motivados pelo exemplo do casal Marlene e Geraldo, o bancário brasiliense Márcio Barros, 34, e a monitora de crianças especiais Marcela Marques, 30, deixaram de ser meros clientes da ecopousada, onde costumavam se hospedar para temporadas de aventuras na Chapada dos Veadeiros, para adquirirem um terreno na região. Descobriram a ecovila Condomínio Habitat, uma comunidade composta por mais de 100 famílias, e passaram a trabalhar na construção da própria casa no local.
Contêiner usado como abrigo, no Sítio Rupestre, na ecovila Condomínio Habitat, na Chapada dos Veadeiros, no município de São João d'Aliança-GO.
Contêiner usado como abrigo, no Sítio Rupestre, na ecovila Condomínio Habitat (foto: Arquivo pessoal/Divulgação)
“A gente sempre gostou de caminhadas em ambientes naturais, mas não tinha a menor ideia de como viver em um contexto fora das cidades tradicionais. No entanto, ficamos impressionados com essas possibilidades de construção com materiais alternativos, o saneamento ecológico, as fontes renováveis de energia, e decidimos embarcar nessa. Estou desenvolvendo muitas habilidades, desde o manejo de madeira ao aquecimento de água para o chuveiro sem eletricidade. É um legado que desejo deixar ao meu filho, Ian. E planejo plantar muitas árvores frutíferas também”, conta Márcio, que, por ora, utiliza um contêiner como abrigo e ergueu uma pequena varanda com madeira de árvores que estavam mortas no terreno. “Foi o melhor investimento que fiz na minha vida. Em um momento de crise sanitária como esta, parece um refúgio seguro”, completa.

» Quatro perguntas para 

Lucy Legan, educadora ambiental, escritora e fundadora do Ecocentro Ipec

A australiana educadora ambiental Lucy Legan, fundadora do Ecocentro Ipec
A australiana educadora ambiental Lucy Legan, fundadora do Ecocentro Ipec (foto: Arquivo pessoal/Divulgação)

A atual pandemia serve para motivar uma reflexão sobre um novo modelo de assentamento humano, diferente do padrão geral das cidades do país?
Com um governo forte, que se concentra na reconstrução de um país, essa pode ser uma grande oportunidade para alterar leis que reflitam a ética do cuidado com a terra. Há muitos anos, as leis de construção foram alteradas em alguns estados da Austrália, tornando as grandes empresas de construção responsáveis pela construção de tanques de água para coletar água da chuva para uso nos banheiros. Em outro estado, os novos edifícios devem ter um teto verde para purificar o ar da cidade, reduzir a temperatura e economizar energia, além de incentivar a biodiversidade na cidade. E, claro, transformação educacional. Ensinar crianças e adultos sobre uma nova maneira de viver no planeta. É preciso mudar o foco e escolher temas que ofereçam as ferramentas para construir um futuro sustentável.

Após a pandemia, a humanidade enfrentará novas crises que demandarão uma mobilização global como esta? 
Os métodos convencionais de governar não serão válidos, pois quase todos os países precisarão reconstruir a economia e a sensação de segurança das pessoas. Em uma nota positiva, isso significa que velhas formas econômicas que apenas beneficiam algumas e grandes corporações podem ser jogadas pela janela. O Brasil pode ter a oportunidade de brilhar após a pandemia, pois é um país rico em recursos. Se o governo se concentrar em necessidades básicas, como comida, água potável, saneamento e educação, o Brasil será uma vitrine de como uma comunidade pode evoluir. Algumas pessoas podem estar pensando que isso é impossível, mas países como a Nova Zelândia estão demonstrando que liderança com compaixão, cuidado com a terra e lógica podem unificar um país.

Quais são os principais desafios para que as ecovilas sejam incorporadas pela população? 
As baixas oportunidades de emprego costumam ser um complicador em ecovilas. Portanto, meu foco seria os subúrbios das cidades. Eu acho a coleta de água para florestas alimentares, os telhados verdes, melhorar a economia local, como o compartilhamento de habilidades, fariam as pessoas se sentirem mais seguras. A experiência da Covid-19 fez muitas pessoas correrem para o supermercado para acumular alimentos. Se os subúrbios se tornarem mais resistentes, isso poderá diminuir o sentimento de pânico, especialmente quando as economias quebram e a inflação aumenta.

Como estão seus dias durante a pandemia? 
Exercício, alimentação saudável e, claro, o auto-isolamento fazem parte da minha rotina diária, além de escrever e cuidar da minha horta orgânica. As coisas desaceleraram, para o benefício do planeta. A pegada de carbono de muitas pessoas diminuiu e isso só pode ser uma coisa boa para o planeta.

  • O casal Thais Yeleni e Juno Rocha (C) vivem com os filhos na Ecovila da Lagoa, em Planaltina de Goiás
    O casal Thais Yeleni e Juno Rocha (C) vivem com os filhos na Ecovila da Lagoa, em Planaltina de Goiás Foto: Arquivo pessoal/Divulgação
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