Correio Braziliense
postado em 18/04/2020 04:06
A arte invisível
Resgatei do caos dos meus arquivos implacáveis um precioso texto sobre Athos Bulcão, escrito pelo crítico Frederico Moraes, em 1998, intitulado O humanizador dos espaços de Brasília. Uma das agudas observações de Moraes é precisamente a de que a obra de Athos está de tal modo presente em Brasília que se tornou invisível. No entanto, apesar de invisível, por excesso de presença, sua obra exerce uma influência considerável no meio formal da cidade, moldando a sensibilidade espacial e cromática do morador de Brasília, educando seu olhar para a arte contemporânea.
Moraes evoca Athos ao lado do baiano-brasiliense Rubem Valentim como dois artistas que conseguiram captar magnificamente o significado da cidade nova. Mas, por uma série de razões, Valentim, com a sua signagem afro-brasileira, teve presença relativamente modesta no espaço público. A singularidade de Athos decorre de sintetizar em seu trabalho as ideias que fundamentaram a criação da cidade. “Coexistem em Brasília, como também na obra de Athos Bulcão, as duas principais vertentes da arte brasileira, o barroco, como raiz e permanência, e a construção (a economia expressiva)”, observa Moraes.
A criação plástica de Athos seria a materialização do ideal da ruptura com os espaços tradicionais dos museus de tal maneira que os fluxos da arte e da vida se confundissem na vivência cotidiana de toda a cidade.“Sem dúvida alguma, a criação plástica de Athos, ao reeducar o olhar brasiliense, abrindo sua percepção para os valores estéticos mais altos que os da cultura de massa e do consumismo, está melhorando a qualidade de vida de Brasília, reafirmando, ao mesmo tempo, a vocação democrática da obra de arte”, argumenta Moraes.
Athos era um homem delicado, afetuoso e cordial. E ele consegue transpor essas qualidades humanizadoras para os painéis de azulejo incorporados à arquitetura. Os relevos do Teatro Nacional evocam a suntuosidade espacial de certas cidades maias ou astecas. Mas Frederico detecta o maior mérito de Athos em outra dimensão de sua arte: “A maior qualidade de Athos tem sido a de resgatar para a arquitetura contemporânea, a melhor tradição da azulejaria luso-brasileira, uma certa dimensão intimista que ajuda a transformar espaços em ambientes acolhedores e agradáveis, que estimulam o bem-estar do visitante ou usuário”.
Athos alcança o mesmo resultado dos painéis do século 19, mas com uma linguagem abstrata, que o distancia de Portinari, um dos seus mestres. “Suas composições azulejares aproximam, dialogam, oferecem a sombra, às vezes até mesmo o recolhimento que leva à serenidade espiritual, e, neste caso, revertendo o caráter muitas vezes frio de uma certa arquitetura contemporânea”.
A cidade deve a Athos Bulcão, que completaria 100 anos em 2017, uma sede digna para a fundação que leva seu nome e já tem projeto assinado pelo parceiro e amigo, o arquiteto Lelé Filgueiras. Athos educa Brasília para a arte contemporânea, mesmo que de maneira invisível.
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