Cidades

Brasília 60 anos: moradores se declaram para a cidade que escolheram viver

No dia em que completa 60 anos, moradores de Brasília se declaram para a cidade que escolheram para viver e chamar de sua

Correio Braziliense
postado em 21/04/2020 08:00
Nascidos em Brasília, Andressa e Renato Teixeira não esperavam a hora de apresentar a cidade à filha, LíviaAos 60 anos, Brasília está de portas fechadas. Na comemoração do aniversário da capital do país, a Esplanada dos Ministérios e o Eixo Monumental se mantêm silenciados. Depois de um início visionário e quase profético, talvez Juscelino Kubitschek não imaginasse que, hoje, o horizonte do Planalto Central não fosse celebrado do alto da Torre de TV. Se sobram vazios no cenário urbano, multiplicam-se lembranças, afetos, histórias candangas e brasilienses em cada asa do Plano Piloto e em cada região do Distrito Federal. 

Amigos de JK
 
imagem em preto e branco de dois homens 
 
Brasília é berço de milhares, mas, no início, era uma incubadora que recebia as jovens vidas e as via aflorar em berço esplêndido — ou melhor, berço de oportunidades. Assim foi para os pioneiros, conhecidos por candangos. Jozsef Kanyo, húngaro-croata naturalizado brasileiro e pai de Lucy Kanyo, 74 anos, foi um desses bravos homens que acreditaram na ideia de Kubitschek. Ele foi o engenheiro responsável pelo projeto do Congresso Nacional e trouxe a família, em 1957, direto do Rio de Janeiro para o cerrado. 

Abrigada nos acampamentos para funcionários, a família Kanyo assistiu de perto ao surgimento da capital. “Era muito emocionante ver uma cidade surgindo do nada. Passávamos à tarde pelos campos de obras e já estava diferente daquilo que vimos pela manhã, tudo acontecia numa velocidade impressionante”, lembra Lucy. A história dela e de sua família se funde à de Brasília, todos construindo um começo. “Meu pai veio em junho, e, nós, em 21 de dezembro de 1957. Lembro do primeiro Natal aqui, no acampamento. Todos os engenheiros e funcionários mais graduados reunidos à mesa enorme, cada família colaborou com um alimento, isso enquanto caía uma chuva fininha, bem comum naquela época.” 

Quando a casa de Jozsef ficou pronta e eles se mudaram para o acampamento, os animais do cerrado faziam companhia, a eles e às demais famílias que chegavam. “O nosso jardim fica onde hoje está a Embaixada do Marrocos. Quando passo por lá, vejo as mesmas árvores que estavam à nossa porta. Era mato puro, víamos siriemas, veadinhos e até lobos-guará. Fui a primeira aluna matriculada na antiga escola Dom Bosco, no Núcleo Bandeirante. Era uma viagem para chegar até lá, e nós íamos nos veículos disponíveis nas obras, normalmente, na boleia dos caminhões ou atrás das caminhonetes.”    

Lucy guarda com carinho o tempo em que ela, com 11 anos, a irmã Jenny, 9, e a mãe ensinavam os operários a ler e a escrever. “Nós arrumávamos cadernos, meu pai instalou uma lousa negra e alfabetizamos alguns operários das obras. Mamãe também adorava jardins, então, sempre que Juscelino ia ao acampamento, juntávamos um monte de flores e entregávamos buquês a ele. Ele nos beijava e abraçava como se fôssemos filhas, tinha um carinho muito grande, fazia uma farra.” 
Lucy lembra com carinho de duas ocasiões: a inauguração da capital e o sepultamento de Kubitschek. “A inauguração representou muito para mim, a festa, a missa, o foguetório. Estavam todos sentados nas caminhonetes e no gramado em frente ao Congresso assistindo à ópera e à queima de fogos na rodoviária. Outra coisa que me marcou muito foi quando Juscelino morreu. Eu chorava durante todo o cortejo. Além de todo o carinho que ele tinha por minha família, suas ideias visionárias nos deixaram órfãos”, lamenta. 

Beleza candanga
 
Anália de Fátima Oliveira, 70 anos, no concurso de miss Brasília 

O quadradinho viu gente chegar e se estabelecer na terra vermelha e seca, marca do cerrado. E na velocidade do levantar dessa poeira árida, cidades nasceram e culturas se mesclaram nessa democrática miscelânea organizada. A mineira Anália Oliveira, 70, veio pequena acompanhando o pai, um caminhoneiro, que vislumbrava um futuro próspero na nova capital. “Em 1957, meu pai, Jesus Marques de Oliveira, veio para cá e, assim que a casa ficou pronta, minha mãe, eu e meus quatro irmãos viemos”, conta.

Anália relembra os bons momentos da juventude, quando dividia o tempo entre estudos, família e sua passagem por concursos de beleza. “Eu fui convidada pelo Clube AreAlfa para representar a capital no concurso de miss. Sinto muita falta das festividades, dos bailes, casamentos e de todos os concursos de miss que aconteciam aqui”, relembra saudosa. Ela também sente falta de um evento, hoje corriqueiro, antes um verdadeiro espetáculo. “A comunidade inteira ia ao aeroporto sempre que o presidente Juscelino chegava a Brasília só para vê-lo desembarcar”.

Monumentos afetivos

As paisagens impressionantes de Brasília fizeram parte da vida de muitos moradores, e suas histórias ficaram marcadas pelos traços da cidade. É o caso da professora Andressa Caroline de Paiva, 39, e do marido, o policial militar Renato Teixeira, 42, ambos nascidos na capital. O casal conta que o sonho de constituir uma família sempre foi grande, mas, para que fosse concretizado, passaram por algumas dificuldades. 

Após turbulentas tentativas, Andressa conseguiu se tornar mãe de Lívia de Paiva Teixeira, 11. Porém, seus primeiros anos de vida foram conturbados. “Ela passou parte da infância em hospitais, devido a doenças que foram sendo descobertas com o passar dos anos.” Após tratamentos, Lívia melhorou, e eles passaram a aproveitar todos os momentos que podiam juntos, levando-a para conhecer a capital. “Nós a levamos para conhecer o Zoológico e o Parque da Cidade. A cidade se tornou, praticamente, o quintal da nossa casa”, brinca. 

Mensageiro apaixonado

“Se tivessem me dado dinheiro, tinha ido embora no dia seguinte”, lembra José de Souza Pinheiro, 66. Era 24 de agosto de 1973, e Pinheiro chegava à capital do país vindo do município paraibano de Diamante, depois de quatro dias e quatro noites de viagem. O irmão morava na cidade havia cinco anos, e ele veio “passear, se gostasse, eu ficava. Se não, ia embora”. Pinheiro desembarcou em Ceilândia, entre poeira, terra vermelha, sem energia elétrica e apenas água de caminhão-pipa. O desejo era o mesmo de tantos outros: oportunidade.

Menos de um mês depois, adentrava no que chama de gigante, o Hotel Nacional. “Todo mundo que vinha para cá, trabalhava lá. Era como se fosse uma escola.” O jovem começou nos serviços gerais, depois ficou cinco anos como ascensorista e, agora, é mensageiro. Mesmo aposentado, não quis deixar o emprego. São 47 anos de Brasília e 47 anos de Hotel Nacional. “Conheci presidentes de outros países, Ronald Regan, o Bush”, conta. Com o sotaque arretado e afetuoso, cativou prestigiados nomes da história do país. Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Sarney, Lula, Roberto Carlos, Roberto Marinho e Silvio Santos apenas para listar alguns. “As reuniões dos políticos e empresários eram todas ali. Era presidente saindo e chegando, as comitivas internacionais. Parecia o Senado ou a Câmara. Do alto, o hotel tem uma vista linda. Não vai ter em nenhum lugar um hotel igual ao Nacional”, afirma. 

O carinho pelo local de acolhida chega a provocar ciúmes até na família. O mensageiro conta que teve oportunidade de trabalhar com um deputado, mas não foi. De sorriso fácil, Pinheiro gosta da troca e dos encontros com os hóspedes. Tornou-se um funcionário querido e um guardião de histórias do Hotel Nacional. Poucos minutos de conversa, e ele lembra dos bailes de carnaval, das reuniões importantes, dos concursos de miss e até das lendas que circulam pelos corredores do local. A conquista foi tão espontânea e valiosa que fez com que Pinheiro voltasse para a Paraíba apenas para noivar, se casar e convencer Maria de Lourdes Ventura, 66, a desbravar o Planalto Central. “Ela foi muito corajosa. Nunca tinha saído de casa.” Os dois constituíram uma família na cidade das oportunidades. “Como cidadão, não troco Brasília por capital nenhuma. Como diz o ditado, quem bebe da água de Brasília não esquece”. 

Paixão hereditária

Carioca do Leblon, Edna Maria Dutra, 82, desembarcou em 1959 no canteiro de obras da cidade sonhada. “Minha lua de mel foi aqui. Achava que era a grande aventura da minha vida. Cheguei à noite, não vi nada. No dia seguinte, eu me assustei um pouco.” Edna veio para ficar com o marido, José Dutra Ferreira. Ele, garçom de JK e mordomo de Brasília. Ela, a sétima telefonista da nova capital. Do barraco de madeira, com chuveiro de água fria, fossa no quintal e prateleiras de madeira construídas por ela e o pai, Edna e Dutra não apenas criaram uma família — seis filhos — como se apaixonaram pela cidade modernista. “Falar de Brasília, para mim, é uma honra. Nunca me arrependi em nenhum momento da minha vida. Sou brasiliense de coração, alma e raiz.” 
 
Edna e Dutra: casal construiu a família em Brasília, onde teve seis filhos 

O amor pioneiro se concretizou no nome da segunda filha do casal — a primeira deles nascida na capital e o quarto nascimento oficial de Brasília. Jussara foi uma singela homenagem a Juscelino (Jus) e a dona Sarah (Sara). A advogada aposentada, que este ano também celebra 60 anos, conta que, onde iam, o pai falava: “Essa aqui é minha filha, a quarta brasiliense”. “Brasília é um sonho não só de JK, como foi um sonho do meu pai. Ele embarcou nisso. Era um apaixonado por Juscelino", acrescenta Jussara. Diante de tantas histórias que ouvia quase diariamente, o churrasco de aniversário de Israel Pinheiro, o convívio com Jânio Quadros, Darcy Ribeiro, Tancredo Neves e Sarney, a filha decidiu incentivar o patriarca a transformar as memórias em um livro. “Senti que tinha que levar o sonho do meu pai para frente. Os dois (Edna e Dutra) eram pessoas simples e aqui construíram a vida. Tinha que dar valor para o meu pai.” Surgiu, assim, a publicação Dutra, memórias de um garçom de JK, mordomo de Brasília. 
 
Filha de Dutra e Edna, Jussara foi batizada em homenagem a Juscelino e dona Sarah 

O livro de 390 páginas seria lançado hoje, depois de anos de dedicação, mas será preciso esperar em razão da pandemia. “Espero que as crianças e os jovens continuem trabalhando por uma cidade melhor, fraternal e por ajudar o próximo.” 

* Estagiárias sob supervisão de Sibele Negromonte

Música para homenagear
A cantora Renata Jambeiro e outros 23 artistas da cidade, entre músicos, poetas, cineastas, cantores e atores, se uniram para, cada um de sua casa, gravar um vídeo e cantar, em um só tom, Parabéns para você em homenagem a Brasília. Assista ao vídeo no site da Agência Brasília.

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    imagem em preto e branco de dois homens Foto: arquivo pessoal
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    uma mulher sentadaa Foto: Arquivo Pessoal
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    um casal sorrindo Foto: Arquivo Pessoal
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    uma mulher sorrindo Foto: Arquivo Pessoal

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