Correio Braziliense
postado em 21/04/2020 04:06
Nelson e Braga
Quando Brasília comemoraria 50 anos, estourou a crise da Operação Pandora. Agora, na marca dos 60 anos, irrompeu a pandemia do coronavírus. Escrevi um livro para celebrar Brasília, mas o projeto foi adiado em razão do caos no qual estamos mergulhados. É uma data simbólica para uma série de reflexões sobre múltiplos aspectos da capital modernista. Brasília é amorável, mas é possível amar a cidade de uma maneira crítica e autocrítica, sem precisar ser ufanista. Fiquei triste, mas não adianta, deixemos os deuses jogarem seus dados.
Na passagem dos 60 anos de Brasília gostaria de evocar a maneira como os dois maiores cronistas brasileiros, Nelson Rodrigues e Rubem Braga, viram a inauguração da nova capital do país. É um duelo de titãs, embora nenhum dos dois se referisse ao outro de maneira explícita ou velada. No Fla-Flu da polêmica sobre a transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília, Nelson era a favor e Braga, contra. Nelson veio a Brasília em um comboio de três ônibus do Cpor (Centro de Oficiais da Reserva), acompanhado pelo filho mais velho, Jofre, para sentir toda a dimensão épica da nova capital: "Que experiência densa, apaixonante, viajar, não num jato, mas em três carroças encantadas", escreveu o dramaturgo. Enquanto isso, Braga passou a noite de 21 de abril de 1960 em uma boate com os amigos.
Só o título da crônica que Nelson publicou no Correio da Manhã seria suficiente para lavar a alma dos brasilienses. Para ele, Brasília era "A derrota dos cretinos". Com velocidade de instinto, o nosso profeta do óbvio embarcou no clima da nova capital, comeu poeira nas estradas, captou alma brasiliana daqueles tempos heroicos e se tornou um candango da cabeça aos sapatos. Braga era contra Brasília, mas o alvo preferencial era Carlos Drummond de Andrade, que escreveu crônica sobre a poeira da capital, que deixava roupa e alma com uma cor avermelhada: "O que se esconde, ou melhor, o que não se esconde atrás dessa alergia ao pó é o sonho de uma confortabilíssima honestidade em Copacabana, sem risco, sem atropelo e com imaculado asseio físico. Todos nós, inclusive o poeta, deveríamos nos encharcar do pó do Planalto Central; o pó que curou a alma de Otto Lara Resende.
O desenho e a plasticidade de Brasília provocaram o mais fundo espanto em Nelson e ela a alçaria à condição de mais bela cidade do mundo: "Eu sei que para os inimigos de Brasília, a beleza passou a ser uma indignidade. Diante do belo, rosnam: 'Fascismo, fascismo'. E, no entanto, o paralelepípedo mais analfabeto haveria de chorar lágrimas de esguicho ante a beleza de Brasília".
Braga esnobava Brasília, nunca economizou veneno contra a nova capital em suas crônicas: "Um túnel ou um viaduto leva anos para ser construído no Rio, qualquer obra se arrasta miseravelmente por falta de verba - e vamos uma cidade nos confins do Judas". Disse, também de maneira malévola e falsa: "Uma criança nascida em Brasília que não sair de lá morrerá sem ver andorinhas, triste sina". Todos nós somos testemunhas das revoadas de andorinhas por vários pontos da cidade.
Mas, ele sentiu o baque quando a capital foi inaugurada. Em crônica publicada na revista Manchete, ele narra o clima de desolação com amigos em uma boate do Rio de Janeiro, com aquele toque inconfundível de lirismo desencantado. Entrou na boate com uma lua federal no céu; saiu com uma lua estadual.
Acompanhemos a narrativa de Braga: "Saímos. E há uma surpresa bonita na noite azul: a lua minguante nasceu, e está suspensa, em sua pureza de prata, sobre as ondas. Está linda. Pode ser uma lua estadual, mas está linda. A província tem suas coisas - pensamos levemente consolados, perante o mar".
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