Correio Braziliense
postado em 23/04/2020 04:06
“Um dia virá alguém que fixará no papel a nossa vida de ‘candango’. As gerações futuras desejarão saber tudo o que aconteceu na capital da esperança”, disse o presidente Juscelino Kubitschek em discurso proferido em 20 de abril de 1960. Eu sou apenas mais uma dos que tomam isso como obrigação, daí a importância de reler, pesquisar e lembrar tudo o que aconteceu na nossa cidade, que completa 60 anos. Costumo dizer que de Brasília só perdi oito anos. Formada em jornalismo pela UFRGS, cheguei aqui em 1968 para fazer um curso de pós-graduação em cultura brasileira na UnB. Houve poucas aulas, porque o curso foi suspenso, o professor sumido e a universidade invadida por militares. Não foi difícil arrumar emprego. O Correio Braziliense me aceitou como estagiária, e, no jornal, começou meu encantamento ao ouvir relatos de testemunhas da construção da nova capital.
As histórias são incríveis e saborosas. Como a da visita, dois meses antes da inauguração, do presidente dos Estados Unidos, general Dwight Eisenhower, numa viagem a que a Casa Branca e as autoridades americanas se opunham, devido à segurança e à falta de logística na comunicação. Aí JK foi taxativo: ou o general Eisenhower visitaria Brasília ou não seria bem-vindo ao Brasil, contou um americano, que vivia aqui, para Manuel Mendes, repórter da agência de notícias United Press International (UPI), que mais tarde lançaria a coluna Correio Diplomático. Sem alternativa, o governo de Washington se pôs a trabalhar um mês antes para montar uma central de comunicação com telex na Escola Parque, que acabava de ser construída e não fora utilizada ainda, enquanto estendia uma parafernália de fios no aeroporto.
Em voo direto de Washington, o Air Force One pousou, às 14h, em 22 de fevereiro de 1960, depois de sobrevoar a cidade por quase meia hora, até Juscelino chegar ao terminal do aeroporto. Com o presidente brasileiro já a postos, dois candangos correram e desenrolaram uma passadeira vermelha para o convidado pisar, assim que deixasse o último degrau da escada. No fim do trabalho, porém, sobrou um grande rolo o que causou aflição aos presentes, quando um dos candangos lançando mão de uma faca, que trazia na cintura, não teve dúvida de cortar o que sobrou da passadeira.
“Daí para a frente, todo o forte esquema de segurança seria furado uma porção de vezes”, escreveu Manuelzinho, numa reportagem publicada em 2 de abril de 1975, nas comemorações dos 15 anos da cidade e do próprio Correio.
Pompeia às avessas
Também visitou Brasília, antes da inauguração, o escritor norte-americano John dos Passos. Contemporâneo de Hemingway e Faulkner, John dos Passos chegou ciceroneado pelo presidente da Novacap, Israel Pinheiro, que, a bordo do avião, “apontou para baixo, onde um corte vermelho rasgava através de colinas vazias, a linha vital de Brasília”. Era a estrada entre BH e a capital. Para o escritor, “Brasília é a primeira cidade do mundo construída para a era dos aviões a jato — teve uma pista de pouso pavimentada de mais de três quilômetros de comprimento antes de ter qualquer edifício”. Depois de uma viagem de quatro horas, John dos Passos desembarcou na modesta construção de madeira que servia de estação, onde se anunciava Brasília — a nova capital do Brasil. Alguns são contra ela, muitos a favor — todos se beneficiarão com ela!
Impressionado com o ritmo alucinado das obras, na companhia do construtor da cidade, o visitante confessou: “Torna-se difícil distinguir o que ali está realmente e o que vai estar”. Daí comparou: “É como visitar Pompeia às avessas”. Depois de alguns questionamentos, o escritor, descendente de imigrantes portugueses, originários da Ilha da Madeira, resumiu que “o plano de Brasília é uma fascinante combinação de retórica vazia e realização positiva”. As observações de John dos Passos sobre a visita foram relatadas para a revista Reader’s Digest, a inesquecível Seleções, cujo artigo o Correio publicou em 24 de abril de 1975, sob o título Antevisão do futuro.
A grande perda
Tudo corria bem naquela época, até que aconteceu uma tragédia: na manhã de 15 de janeiro de 1959, quando estava sendo cortada a mata para dar lugar à rodovia Belém-Brasília (ficou pronta antes da inauguração da cidade) um gigantesco galho de uma árvore de 40 metros caiu sobre a barraca onde estava o engenheiro carioca Bernardo Sayão, o construtor de estradas, “um homem idealista e corajoso”, no dizer de Oscar Niemeyer. Com crânio fraturado, braço e perna esquerdos, continuou em pé, reza a lenda. Não havia médico nem remédios, e os operários gritavam desesperados. À tarde, quando passou um Cessna lançando comida, eles se deitaram no chão em forma de cruz. Foi a senha para o socorro, que chegou em um helicóptero, que conseguiu pousar na clareira para transportar o ferido, mas, às 19h, Bernardo Sayão morreu no ar. No dia seguinte, único em quase quatro anos de construção, tudo parou.
Anoitecia, quando os tratores abriram caminho até o Campo da Esperança, onde centenas de candangos, de luto, enterraram o corpo do pioneiro, inaugurando o cemitério que ele próprio havia demarcado. Ao seu lado, foi enterrado Benedito, ex-motorista de Sayão, que teve um enfarte quando soube da morte do ex-chefe. A trajetória de Bernardo Sayão foi relembrada pelo Correio, na edição de 17 de junho de 2001, quando o herói da construção da cidade completaria 100 anos.
Origem do quadrado
Desde muito tempo constava do mapa do Brasil um quadrado no centro, como sendo o lugar da futura capital. Mas esse quadrilátero só começou a ser demarcado depois que se formou uma comissão para esse fim, em 1955. Três municípios goianos doaram as terras: Luziânia forneceu 39,2% do total; Planaltina, 33,4%; e Formosa, 27,3%. No município de Luziânia situavam-se 42 fazendas; no de Planaltina, 38; e no de Formosa, 25. A reação dos fazendeiros foi favorável, estavam todos muito ansiosos pela transferência da capital. Apenas um, dono de uma propriedade em Sobradinho, era contra, o que acarretou um impasse. Segundo notícias que corriam, ele sofria do coração, daí não se podia insistir, porque poderia ser fatal.
Presidia a Comissão de Cooperação para a Mudança da Capital, instalada em Luziânia, a antiga Santa Luzia dos tempos da mineração, o médico goiano Altamiro de Moura Pacheco, que sendo da oposição (fora vencido em 1950 por Pedro Ludovico para o cargo de vice-governador), trabalhou com dedicação acima das contingências partidárias. Um dia, olhando pela janela de seu escritório, Dr. Altamiro viu o tal fazendeiro passando. Diplomata, cumprimentou com um sorriso e perguntou-lhe: “Você não quer fazer uma consulta grátis?” Depois de auscultar o coração do homem e ver que estava firme, o doutor propôs: “Então vamos tratar agora da venda da sua fazenda”. Quando o cliente saiu, a terra já pertencia ao Distrito Federal, “sem choro e sem colapso”, narrou Maria Valdira, na capa do então Caderno 2, do Correio, em 12 de abril de 1975, em mais uma série de reportagens comemorativas ao aniversário de Brasília
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