Correio Braziliense
postado em 24/04/2020 04:06
Patrimônio espiritual
Darcy Ribeiro dizia que só se fazem sábios com sábios. Na passagem dos 60 anos de Brasília e, em face do desdém de certos governantes pela vida dos longevos, resolvi homenagear alguns mestres da cidade que estão de sessentena, de setentena e até de oitentena. Todos foram, em alguma medida, forjados por Brasília, gostam de trabalhar com jovens e formaram várias gerações de brasilienses.
Salve, Hugo Rodas, nosso bruxo emérito do teatro, em estado de graça com as montagens recentes de Os saltimbancos e O rinoceronte, em parceria com a Agrupação Teatral Amacaca. Não importa que idade tenha, Hugo é um adolescente nato e todos são caretas diante dele.
Alô, Vladimir Carvalho, nosso cangaceiro sofisticado das artes, que filmou alguns dos mais importantes momentos da saga de Brasília, com espírito crítico, na contramão do cartão-postal e da visão oficial. Ele humaniza, civiliza, viriliza, dignifica e eleva Brasília com seu ânimo aguerrido e inflamado.
Salve, Lucília Garcez, escritora de textos delicados de literatura para crianças e adolescentes e organizadora de rodas de leitura essenciais. De uma destas, surgiu o projeto Calango Leitor, coordenado por Claudine Duarte, levado às escolas do DF, que foi finalista do Prêmio Jabuti.
Alô, Galeno, nosso curumim arteiro, que reinventa a memória de menino parnaíba e a vivência brasiliana como se fosse um quebra-cabeça lírico de infinitas possibilidades.
Salve, Francisco Alvim, nosso Dalton Trevisan do Lago Norte, com sua antipoesia implacável, feita de cacos cotidianos de linguagem. Segundo Nicolas Behr, Chico alfabetizou a poesia marginal. Ele é a maior autoridade na luz brasiliana.
Alô, Wagner Hermusche, que refundou a cidade com a série de serigrafias das noites brasilianas, injetando uma alma elétrica na paisagem noturna e silenciosa de Brasília, como talvez faria Renato Russo, se pintasse.
Salve, João Antônio, que esteve à frente e detrás de quase tudo de mais importante que ocorreu no teatro de Brasília. Foi ele quem sugeriu ao embaixador Wladimir Murtinho que depósitos vazios na W3 Sul fossem transformados nos teatros Galpão e Galpãozinho.
Alô, Beth Ernest Dias, que tem mais horas de flauta do que beija-flor de voo. Além de tocar muito, ela reconstituiu os fios perdidos da história do choro em Brasília, a partir da pesquisa sobre Avena de Castro.
Salve, Reco do Bandolim, baiano elétrico que profissionalizou o choro e teve a presciência de criar a Escola de Choro Raphael Rabello. Graças a ele, hoje existe uma legião urbana de crianças e adolescentes que fazem diabruras com um pandeiro e com um cavaquinho.
Alô, Sérgio Moriconi, uma espécie de neto espiritual de Paulo Emílio Sales Gomes, pois, com seus cursos livres, formou várias gerações de brasilienses apaixonados pelo cinema.
Salve, Climério e Clodo, irmãos piauienses, autores de vários clássicos da música popular brasileira moderna, que, de vez em quando, ouço no rádio enquanto atravesso a ponte JK.
Alô, José Carlos Coutinho, professor de arquitetura, que assiste a todos os eventos culturais importantes de Brasília e já foi visto em três lugares ao mesmo tempo.
Salve, Luis Humberto, que fotografou com a irreverência de um cartunista, deixando nus o rei e os bobos da corte.
Alô, Renato Matos, que botou vatapá no caldeirão modernista, e fez Brasília balançar no reggae afrobrasiliano. Ah, essa solidão celular...
Eles são preciosos, nos ensinaram a amar Brasília e fazem parte do nosso patrimônio espiritual. E, como diria o poeta TT Catalão, fica o erudito pelo não dito.
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