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Correio Braziliense
postado em 27/04/2020 04:15
Nesta quarentena, tenho me sentado ao lado de uma estante de livros emprestada. Diante de obras desconhecidas, outras tantas familiares, muitas delas clássicos da literatura. Em busca de inspirações ou de um passatempo para os momentos de descanso, percorro as prateleiras com olhar de lince, vasculhando títulos e identificando autores que admiro.

Cheguei, então, à seleção de 50 contos de Machado de Assis, por John Gledson. Nada melhor do que textos curtos e uma boa pitada da ironia machadiana a cada dia desse isolamento social. Guiada pela breve introdução do organizador, percorro o sumário com o objetivo de escolher o próximo texto da lista. Muitos deles foram publicados em jornais no século passado, um incentivo e tanto para esta cronista que vos escreve. 

Talvez o mais adequado para o período em que vivemos fosse O Alienista, mas, este, reli há pouco e compartilhei aqui com vocês, leitores, as impressões sobre a assustadora atualidade do texto escrito em 1881. Confesso que minha jornada pela obra está ainda bem no início, não passei sequer por um quinto dos textos meticulosamente selecionados para abarcar a versatilidade e a ousadia do escritor brasileiro, que tratou do adultério à escravidão.

Antes de reler o divertido Um apólogo, diálogo entre um novelo de linha, uma agulha e um alfinete, que termina com a inesquecível conclusão do narrador: “Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!”, acabei por conhecer a história de Pestana, em O homem célebre.

Sim, é o próprio Pestana o personagem central da trama. Autor de polcas de sucesso naquela década de 1870, conta-nos o narrador, passaram-se rápido os dias em que sentira orgulho do ofício, que, para ele, tornou-se um mero ganha-pão. O músico queria mais. Noites de insônia o atormentavam. Na parede figuravam Mozart, Bach, Schumann e alguns outros, suas inspirações. “O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.”

Nosso compositor lamentava, “interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo”. “Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?”, indagava o pobre Pestana. “Se acaso alguma ideia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar.” As polcas, essas nasciam com facilidade extrema. Daquelas mãos nem uma página saía que merecesse ser “encadernada entre Bach e Schumann”. “Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado”, tripudia o narrador.

Difícil imaginar que fosse um dilema que o próprio Machado pudesse ter enfrentado. Mas outras sacadas no texto mostram a genialidade de alguém que compreendeu sua humanidade como poucos. Ao se deparar com notas que julgava extraordinárias, Pestana, nosso quase herói da música clássica, percebeu que tudo não se passava de cópia de uma peça de Chopin. “A ideia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições.”

Temos, hoje, uma infinidade de recursos que impeçam essa traição e que permitam à memória permanecer viva, não só nas estantes de livros.
 

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