Cidades

Crônica da Cidade

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Correio Braziliense
postado em 01/05/2020 04:06

Turma da feirinha

Sempre gostei muito do ambiente de bagunça organizada das feirinhas. Elas pontilham as superquadras e dão um tempero popular em uma cidade planejada e, em alguma medida, artificial. Nos tempos em que morava em Sobradinho, ia até o centro todos os domingos e voltava com as sacolas abarrotadas: "O patrão morreu e a viúva enlouqueceu, é pra acabar freguesa". Adoro os bordões de feira. Agora, frequento uma dos produtores de São Sebastião, mas dei um tempo depois da pandemia.

É verdade que Brasília tem segregação espacial. Mas, gostaria de ponderar que, da mesma maneira que em outras cidades, em Brasília a classe média e alta mantêm relações comerciais,  de prestação de serviços ou de filantropia com os pobres. Não me consta que os remediados e ricos de São Paulo ou Rio de Janeiro visitem a periferia ou as favelas pelo mero prazer de convivência social.

Fui até São Sebastião buscar umas máscaras que encomendamos a uma costureira e passei em frente à feirinha dos produtores. Praticamente, não havia nenhuma diferença em relação aos tempos pré-isolamento social. De relance, dava para perceber a aglomeração de pessoas. Fiquei preocupado e pensei em alguns feirantes que eu conhecia durante o tempo em que fizemos compras por lá.

Onde estaria o simpático pessoal da banca de queijo, que sempre nos dispensa a gentileza de guardar uma boa peça para nós. E aquela família de produtores rurais, tão laboriosa e educada, que vende verduras a um preço acessível e honesto? Como estará aquela paraibana brava que vende milho? E o que será da senhora que faz uns biscoitos gostosos e, algumas vezes, deixa queimar porque dorme durante o processo de assamento?

Penso, também, na angolana de olhar e feições tristíssimas que teve o produto devolvido por uma cliente, ficou indignada e sentenciou: "Você tem coração ruim". Eu e minha esposa tentamos atenuar a situação, mas sobrou também um pouco da ira dela para nós: "Vocês também têm coração ruim". Ficamos tristes pela angolana, mas achamos melhor sair dali e rir do mau-humor da mulher. Onde estará a angolana tristíssima?

Felizmente, para compensar, poucos minutos depois, fomos comprar bananas em outra banca e encontramos outra angolana, mas esta era simpaticíssima. Eu gosto de prestar atenção na luz dos olhos das pessoas para saber o que esperar delas. Mirei a angolana e fui ferido por uma intensa luz de bondade. Voltamos em outra semana, pedi uma dúzia de bananas ao filho da senhora,  fui surpreendido com uma alta de preço de mais de 50% e protestei. Ao ver a discussão, a senhora ordenou ao filho, com autoridade serena, mas firme, que restabelecesse o preço justo.

O rapaz atendeu na hora, sem nenhuma réplica. Mas ela não ficou por aí. Depois que eu guardei as bananas na sacola, procurou algo na banca, apanhou uma batata doce e me ofereceu para limpar qualquer mágoa do mal-entendido. Para dizer a verdade, nem gosto de batata doce. No entanto,  fiquei tocado com a generosidade, a nobreza e a sabedoria daquela mulher do povo. Onde estará ela?

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