Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 05/05/2020 04:07
Confinado, graças a Deus

Estava pensando se conhecia alguém que não sentiu muito os efeitos do isolamento social, pois já vivia, de alguma maneira, muito recolhido, antes mesmo do confinamento imposto pela pandemia. De repente, deu um estalo e lembrei do Salles. Sim, ele mesmo, José Salles Neto, presidente da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, que edita livros artesanais maravilhosos.

Se alguém me perguntasse, à queima-roupa, quem gosta mais de livros no mundo, eu responderia sem vacilar: Salles. Ele mesmo complementa com a maior desfaçatez: “Pode ser que tenha quem goste igual, mais do que eu, ninguém”.

Posso testemunhar a seu favor. Ele é o nosso José Mindlin do cerrado, mas com uma diferença crucial. Enquanto o ilustre bibliófilo paulista tinha o complexo de fábricas para bancar a paixão, Salles vendeu o carro para editar livros. Ele é, a um só tempo, o presidente, o editor, o revisor, o divulgador, o motorista, o carregador e o office boy da Confraria dos Bibliófilos.

Os confrades recebem as encomendas como se fossem agraciados por um presente dos deuses. Imagine você abrir um pacote dos Correios e se deparar com um livro artesanal de arte contendo crônicas de Rubem Braga, ilustradas por Millôr Fernandes.

A paixão de Salles pelos livros é contagiante e fez com que conseguisse a façanha de transformar em cúmplices dos seus projetos alguns dos personagens mais intratáveis do mundo literário. É o caso de Dalton Trevisan, Rubem Fonseca ou de Poty, ilustrador de Guimarães Rosa.

Ante a insistência de Salles, Poty comentou: “Olha, Salles, nunca vi pessoa tão insistente. Eu acho que você está possuído pelo espírito do velho Rosa. Vou fazer as ilustrações, pois tenho certeza que, se não fizer, também serei atormentado pelo maldito espírito do Guimarães Rosa”.

A Confraria está celebrando 25 anos de atividade e não parou durante o confinamento, mesmo porque cada integrante das diversas etapas da produção trabalha isolado. No momento, prepara edição especial com antologia de poemas de João Cabral de Melo Neto, na passagem do centenário do poeta pernambucano. Salles envia os arquivos por e-mail para um operário em Águas Lindas, que grava cada palavra do original de João Cabral em linotipo, utilizando 3 toneladas de chumbo.

As ilustrações dos livros de Salles merecem uma exposição no CCBB. Ele é engenheiro elétrico aposentado da Telebrasília e mora em um sobrado, no Lago Norte, transformado em uma biblioteca de babel, com mais de 15 mil livros, sendo 3 mil de arte, desmoronando por todos os lados.

Antes da pandemia, Salles já vivia confinado. A única diferença que sentiu foi ser impedido de ir ao cinema, a exposições e a restaurantes duas vezes por semana. Ele caminha, dorme, sonha e acorda pensando naquilo: livros. Adora olhar, manusear e ler. Para Salles, viver confinado é um projeto de felicidade, graças a Deus.




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