Cidades

Solidariedade gera inclusão

Voluntárias confeccionam máscaras transparentes para surdos. Muitos deles dependem da interpretação dos lábios e das feições dos interlocutores para se comunicar. Modelo adaptado é opção para interagir e seguir a orientação de prevenção contra o coronavírus

Correio Braziliense
postado em 13/05/2020 04:05
Erica Bacchetti doa os equipamentos de proteção individual transparentes, que deixam os lábios visíveis
Se distanciar é, hoje, a melhor forma de combate ao coronavírus, mas estar isolado não é fácil. E para os 92.587 moradores do Distrito Federal com comprometimento de audição, os obstáculos são ainda maiores. As máscaras que protegem contra a covid-19 se tornam barreiras também contra a comunicação dessas pessoas, que precisam observar lábios e expressões para compreender o que é dito.

“Acaba que o surdo está isolado duas vezes, porque tem dificuldade em se comunicar dentro e fora de casa”, desabafa Pammelleye Katherinne Françoise, 24 anos. Como somente uma parcela pequena da população conhece a Língua Brasileira de Sinais (Libras), novas estratégias começam a ser pensadas, com solidariedade e empatia. De acordo com o último levantamento da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), feito em 2018, existiam 4.069 pessoas surdas e 92.587 com algum tipo de dificuldade de audição na capital.

Uma alternativa de comunicação que vem sendo muito comemorada por essa população nesse momento é a utilização de máscaras transparentes. Elas continuam protegendo contra o vírus, mas não dificultam a compreensão de quem tem algum tipo de deficiência auditiva, como explica a fonoaudióloga Erica Bacchetti. “Sempre faço um paralelo com quem diz que tira os óculos e não ouve bem. Muitas vezes não ouvimos o que a pessoa diz, mas sabemos que ela está reclamando ou fazendo uma pergunta pela expressão, pelos movimentos dos lábios. Quando alguém fala com a boca completamente coberta pela máscara, traz uma dificuldade ainda maior para quem tem comprometimento da audição”, detalha a especialista em audiologia.


Erica percebe essas barreiras no trabalho e dentro de casa. “Tenho uma filha com deficiência auditiva que, assim que compramos máscaras, perguntou como ia entender a professora na escola se ela também usasse”, conta. Por conta dessa necessidade, a clínica Para Ouvir começou um projeto de doações de equipamentos de proteção transparentes. A empresa produziu 2 mil máscaras em modelos que deixam os lábios visíveis e doa para familiares de pessoas com dificuldade para ouvir e profissionais que atendem surdos, principalmente.

“Estamos vivendo um momento tão difícil de isolamento das pessoas, e ter ainda mais uma barreira, não poder se comunicar, é muito ruim para eles”, afirma Erica.

Inclusão
Para amenizar a barreira de comunicação entre surdos e ouvintes, Renata Sabbat, 46 anos, pensou em costurar e doar máscaras personalizadas na igreja que frequenta. “A ideia surgiu quando eu li uma reportagem sobre uma moça no exterior que tinha feito máscaras para surdos com a parte da boca transparente. Como na nossa igreja tem o grupo de surdos, eu também me preocupei com eles.” A servidora pública colocou a ideia no papel com a ajuda da tia. “Como ela é costureira, pedi para que fizesse as medidas corretas e me ensinasse como fazer”, relata.


Para a confecção, foi utilizado TNT, arame e plástico transparente (veja Modelo). “O arame ajudou a acomodar melhor a máscara no nariz”, diz Renata. Na primeira doação, foram entregues 30 máscaras. “A resposta dos surdos foi ótima. Eles pegaram não só para si, como também para os intérpretes”, conta.

O retorno positivo fez com que ela e a tia continuassem as confecções. “Tenho feito de noite, assim que acaba o expediente, e fico até as 23h. A meta é fazer até 30 máscaras por semana”, afirma a servidora. “A gente também precisa que mais gente produza, porque os surdos precisam de muitas máscaras dessas, já que depois de uma quantidade de lavagens ela precisa ser descartada”, aponta a voluntária.

A coordenadora dos ministérios com os surdos da igreja, Darlene Contaifer, 53, ficou emocionada com o gesto. “O surdo precisa de algo próprio dele. Ele está dentro da comunidade e precisa de visibilidade”, define. Para a intérprete, o isolamento social prejudica a interação deles com o meio externo. “Por isso, reforçamos esse contato deles com a associação da igreja. A gente tenta se reunir on-line e conversar com eles pelas redes sociais”, diz.

No local, há 25 surdos, entre eles, Rodrigo Gonçalves Lima, 40. O teólogo gostou do projeto. “Se todos os ouvintes utilizassem a máscara transparente, nos ajudariam bastante. Com ela, a gente consegue ver a marcação da boca e as expressões da pessoa”, explica. Apesar do benefício, ainda há algumas questões para se pensar. “À medida que a pessoa fala, vai dando um vapor na máscara. Também acontece de a luz bater e dar um reflexo. Esses fatores dificultam a visualização”, observa Rodrigo. Outra barreira a ser enfrentada é o preconceito. “A gente sai na rua e fica com vergonha, porque as pessoas fazem piada. Ainda existe muita falta de conhecimento e respeito”, lamenta.



Serviço

Quem quiser receber as máscaras transparentes feitas pela Para Ouvir precisa preencher um formulário no Instagram da clínica (@paraouvirbem) e buscar em um dos pontos de coleta.


Modelo


» 2 tiras 22x7cm dobradas ao meio (superior)
» 2 tiras 25x7cm dobradas ao meio (laterais)
» Pedaço de plástico maleável 18x11cm
» 2 elásticos de 15cm
» 1 arame de fechar pacote de pão



Três perguntas

Ana Cecília Ferreira de Amorim, psicóloga e mestre em processos do desenvolvimento humano e saúde


Como o isolamento social pode impactar psicologicamente os surdos, especialmente aqueles que nasceram surdos? 
A condição social do surdo já é de isolamento, seja o surdo por nascença, seja o que se tornou surdo. Vou falar especialmente daqueles que nasceram surdos e cuja língua principal de acesso às informações é a língua de sinais. A gente sabe que a grande porcentagem dos surdos nascem em uma família de ouvintes em que apenas um ou nenhum dos membros da família aprende a língua de sinais para se comunicar com eles. Então, eles já estão em isolamento social por conta da surdez. Pelo fato de a própria família não saber como lidar ou como fazer, eles acabam vivendo esse isolamento, não conseguem participar das conversas. Não consigo ver de que forma esse isolamento social, a que todos nós estamos submetidos, agora, poderia ser diferente do que eles já vivem.

Quais são as principais dificuldades abordadas por eles durantes este período?
Uma das dificuldades é o uso da máscara, porque a comunicação orofacial auxilia na comunicação comum com os surdos. Eles observam muito dentro da comunicação a expressão facial. Por isso, a existência de máscaras produzidas e adaptadas para eles ajuda para que a comunicação seja mais precisa.

Existe uma forma saudável de tentar manter a saúde mental neste período?
A recomendação geral dentro dos procedimentos de saúde mental é tentar manter uma organização da rotina. Que a gente possa ter uma organização sobre ela e que inclua, especialmente, a atividade física. Tentar manter uma organização mental é um dos fatores principais.



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