Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 19/05/2020 04:07
A solidão do número

Como sempre ocorre em todas as situações de pandemia, semelhantes às de guerra, estamos ameaçados pelos números. Não existem mais pessoas com rostos, singularidades e histórias. Mas embaixo de cada número, há drama, acaso, sonho e destino.

Claro que temos de fazer contas o tempo todo. No entanto, elas precisam ter o sentido da felicidade, da necessidade, da sustentabilidade, da generosidade e da justiça. O uso exclusivo dos números para nortear a nossa vida empobrece, obscurece e aliena. Deixa-nos cegos para outros aspectos essenciais da realidade.

Por exemplo, os economistas costumam louvar, em prosa e verso, automaticamente e acriticamente, as estatísticas da produção agrícola sem atentar, em nenhum momento, para os impactos no meio ambiente. Todavia, os cientistas têm alertado que as monoculturas afetam o ciclo das águas e contribuem para o acirramento da crise hídrica.

O mercado tornou-se uma entidade divina com suas leis implacáveis. Para quê? Oito bilionários detêm o bolo maior da riqueza do mundo enquanto nações inteiras agonizam na linha da pobreza ou da miséria. Estou sentindo a solidão terrível do algarismo. Isso me deu uma absurda nostalgia do humano, do transcendente, do utópico, do inefável e do erro.

Em 1967, Clarice Lispector escreveu uma crônica proclamando, a plenos pulmões, que era um número. No entanto, logo em seguida, ela própria se insurgiu contra a sentença proferida e resolveu fazer nova crônica retificando a declaração insensata.

Depois de meditar um pouco sobre o tema, chegou à conclusão de que não, definitivamente, não era um número. Na pressa para entregar o texto, ela mesma sentiu-se ultrajada pelas próprias palavras. Farejou no ar que havia desagradado e incomodado muita gente.

A nova crônica foi uma insurreição contra a frieza e a desumanização do número. Encontrei em suas palavras um oráculo para a minha aflição atual com o pesadelo de um mundo regido, soberanamente, pelos algarismos: “Não. Você não é um número. Nem eu”, sentencia Clarice, com a velocidade de sua intuição fulminante.

E continua: “Porque há o inefável. O amor não é um número. A amizade não é. Nem a simpatia. A elegância é algo que flutua. E se Deus tem número — eu não sei. A esperança também não tem número. Perder uma coisa é inefável: nunca sei dizer onde as coloquei. Inclusive, perco até a lista de coisas a não perder. Morte é inefável. Mas a vida também o é. Inclusive, ser é de um provisório impalpável”.




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