Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 27/05/2020 04:06
Histórias do Nelson

Fernanda Montenegro participava de um grupo de teatro que encomendou duas peças a Nelson Rodrigues. Ela ficou encarregada de cobrar do nosso profeta do óbvio: “Eu queria falar com o Nelson Rodrigues”, ligava Fernanda para o jornal. Nelson atendia com a inconfundível voz cavernosa: “O Nelson não está", dizia com o maior descaro. "Então, quem fala?" "Nestor”, respondia Nelson. Fernanda continuava: “Seu Nestor, o senhor poderia dar um recado ao Nelson?”

E Nelson devolvia: “Pois não, minha senhora”. Fernanda explicava: “Por favor, avise ao Nelson que a Fernanda está cobrando as peças que ele ficou de escrever”. Cínico, Nelson garantia: “Pode deixar, minha flor, passo o recado ao Nelson”. A cena se repetiu durante dois anos até Nelson entregar as peças prometidas.

Dois amigos eram essenciais a Nelson: Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. Admirava as frases inspiradas do Otto, que vinham em borbotões na conversa trivial, dizia que era preciso um taquígrafo para registrar, 24 horas por dia, até os suspiros do amigo. Já Hélio era um personagem épico, que tinha voz de barítono de ópera. De repente, às 3h da madrugada, Nelson cismava que precisaria conversar com Otto e com Hélio.

Não sabia dirigir, acordava o filho Nelsinho, e pedia para levá-lo às casas dos amigos em um fusquinha. Ao chegar à do Otto, Nelson batia à porta e, quando alguém aparecia, ele berrava: “A besta do Otto está?”. E, ao aportar na casa do Hélio, gritava ao primeiro que acordava: “A besta do Hélio está?”

Em uma noite, quando saía do trabalho, Heleninha, filha do Otto, olhou para o letreiro luminoso de um teatro no centro do Rio de Janeiro e não acreditou no que viu. O título anunciava, com estardalhaço, o espetáculo em cartaz: “Otto Lara Resende ou bonitinha, mas ordinária”. Ela desabou no choro e voou para casa. A família do Otto ficou revoltada.

Carlos Drummond ligou para o Otto e exigiu: “Reaja, reaja!”. Nelson escreveu uma crônica para reparar o estrago, mas a emenda foi pior do que o soneto. Disse que só queria homenagear um grande personagem do Brasil.

Se o Otto ganhasse o Prêmio Nobel de Literatura, atravessaria o Oceano Atlântico a nado para receber a láurea, e Carlos Drummond esbravejaria: “Reaja, Otto, reaja!”. Só os amigos do Otto não gostaram; Otto adorou ser título de peça. Segundo Nelson, de lábios trêmulos e de olhos rútilos, Otto teria dito, felicíssimo: “Eu pago o neon, eu pago o neon”.

Arnaldo Jabor era amigo de um dos filhos de Nelson, Joffre Rodrigues, com quem o cineasta prestava serviço militar. Jofre marcou o encontro, e Jabor pediu a Nelson os direitos autorais da peça Toda nudez será castigada para rodar um filme.

Nelson perguntou se ele havia feito algum filme antes. Jabor respondeu, meio envergonhado, que sim: “Filmei Pindorama, que, inclusive, foi um fracasso de público”. Nelson replicou entusiasmado: “Parabéns, meu filho, um homem não é nada sem um fracasso. Eu cedo os direitos.”

Certa vez, Nelson concedeu entrevista a um programa de televisão. A certa altura, o jornalista desfechou uma pergunta provocante: “O que você diria a quem não acredita em Deus?” Nelson permaneceu estático, paralisado em silêncio dramático durante alguns segundos, apontou o dedo indicador para a câmera e ordenou: “Fica de quatro, agora, fica de quatro!”.





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