Cidades

O renascimento após a covid-19

No DF, até ontem, 5.127 pessoas haviam se curado da doença que tem assustado o mundo. Número equivale a mais de metade dos casos na capital federal

Correio Braziliense
postado em 31/05/2020 04:08

O novo coronavírus, em sua invisibilidade, enfraquece o fôlego de vida dos infectados. Limita cheiros, movimentos e respirações. A doença afeta mais do que o corpo e abala a saúde mental tanto dos contagiados quanto dos que temem se infectar: o medo é compreensível numa situação dessas. Da mesma forma silenciosa com a qual o vírus se dissemina, ele também é enfrentado. Uma luta que requer resiliência, entremeada por temores e angústias. Para os que sobrevivem, a vitória é celebrada com a certeza do calor do acolhimento.

Se, por um lado, a covid-19 traz incertezas; por outro lado, existem guerreiros que vencem essa batalha e voltam a preencher a vida com esperança, cheiros, movimentos. No Distrito Federal, dos 9.474 casos confirmados do novo coronavírus, 5.127 tiveram um final feliz até o momento. Mais da metade dos pacientes venceram a doença e a batalha. Para vários deles, a sensação é de renascimento, tanto para os que se trataram no hospital, quanto para os que se recuperaram em casa. Eles relatam como foi enfrentar a doença que amedronta o mundo.

* Estagiária sob supervisão de Ana Paula Lisboa





Uma nova vida


A recuperação nas UTIs dos hospitais se torna motivo de comemoração. A corretora de imóveis Rosilaine Bueno, 28 anos, foi a primeira paciente a deixar a UTI do Hospital Universitário de Brasília (HUB). A mulher teve alta na última quinta-feira quando foi recebida por familiares com balões, faixas e música. A festa não era para menos. Rosilaine venceu uma grande batalha. Ela ficou 13 dias na unidade, 10 deles respirando com a ajuda de aparelhos. Hoje, em casa, ela destaca que o sentimento é de vida nova. “Eu renasci. Eu me sinto muito feliz com o convívio da minha família”.



Enquanto ficou internada, Rosilaine não pôde ter contato com os amigos e os entes queridos. Para lutar contra a doença, apegou-se à fé e ao apoio da equipe médica. “Os cuidados no hospital foram ótimos, mas estar em casa é um prazer enorme”, conta. Rosilaine chegou a desanimar enquanto estava internada. “Eu não acreditei que sairia de lá, mas, quando soube da cura, fiquei muito feliz. É uma emoção muito grande vencer essa doença”, comenta.



Os cuidados com a saúde continuam ao lado da família. Rosilaine foi orientada a ficar por alguns dias em casa e manter recomendações de higiene e distanciamento social. A doença, agora, é um capítulo do passado, mas ainda merece destaque e atenção. Como quem sentiu na pele a dor da covid-19, ela aconselha: “Tomem os devidos cuidados. Achei que nunca fosse pegar e peguei. Senti o mal que esta doença faz. Só quem já passou, sabe”.



Sofrimento solitário


O personal trainer Caio Quemel, 24, também precisou encarar o tratamento hospitalar sem a companhia dos familiares. O jovem descobriu que estava com a doença na segunda ida ao hospital, em março. Com os sintomas respiratórios, ele foi rapidamente encaminhado para quarentena hospitalar. A suspeita dele é de que tenha contraído a doença no Rio de Janeiro, pois sentiu os sintomas após retornar de uma viagem ao estado. No hospital, ficou um dia na UTI e cinco em leito isolado comum. Dias pelos quais passou sem ver a família e os amigos.

“Era péssimo não receber visitas, pensava: e se eu morrer e não tiver visto minha mãe para me despedir?”, relata. Sem contato direto com os entes queridos, o personal apegou-se ao jogos on-line, uma distração para superar os dias de isolamento. Durante a internação, ele afirma ter percebido a quantidade de pessoas que se importavam com ele. Ao retornar para casa, ficou 14 dias trancado no quarto sem contato com a mãe e a avó. As refeições eram entregues na porta e consumidas com talheres descartáveis. O isolamento só teve fim após a notícia da cura.

Recuperado, pôde voltar à rotina sem deixar os cuidados de lado. “Meu dia a dia é o mesmo de uma pessoa comum em quarentena. Tenho contato com outros sempre com máscara, saio apenas para o supermercado e trabalho em casa com aulas on-line”, descreve. Agora, por causa de um pedido da médica que o acompanhou, ele está participando de uma pesquisa do hospital particular. Após 30 dias de recuperação, Caio voltou para realizar uma tomografia, a próxima visita será daqui 120 dias.



Filme de ficção científica

“Eu pirei”, resume Eliza Gomes de Araújo, 59, sobre quando ouviu, pela primeira vez, o diagnóstico positivo para o novo coronavírus. “Cardiopata, hipertensa e com uma criança de 5 anos em casa… E pensar que eu tinha algo que poderia passar para ela. Para mim, só sobrou rezar”, desabafa. Ao todo, Eliza ficou 10 dias internada no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN). Os primeiros sintomas da doença surgiram no fim de abril. Um leve resfriado, febre, falta de apetite, apesar do olfato normal, e muitos incômodos na bacia.

“Tenho hérnia de disco e esclerose na bacia. As dores acentuaram-se muito, não conseguia mais andar”, relembra. Contudo, apenas na terceira ida ao hospital, uma semana depois da febre, ficou constatado nível de oxigenação abaixo do normal. “Como, desde o início, eu não sabia o que poderia ser, isolei-me em casa. No Hospital de Santa Maria, colocaram-me em um local só com pacientes suspeitos e, de lá, me transferiram para o HRAN”, detalha.

Muito direta e extrovertida, Eliza responde que o caminho para enfrentar o isolamento, a rotina hospitalar em meio à uma pandemia, foi fingir demência. “Tem que ludibriar o cérebro para não entrar em parafuso. Evitava refletir sobre o que estava se passando e comecei a me dedicar a pensar positivamente para evitar entrar em colapso”, descreve. Mesmo porque, a paciente reconhece que, como hipertensa, precisava controlar a emoção para não alterar a pressão.

“Também tive muito apoio da família. Como a gente fica com o celular lá dentro, ficavam me mandando mensagem para que eu conseguisse passar por esse momento”, conta. Uma imagem, no entanto, não vai sair da memória. “A primeira noite do isolamento, na ala dos pacientes positivos de covid… Como era noite, eu não conseguia entender onde estava. Fiquei muito chocada. As pessoas com proteção de plástico no rosto e um homem uivando chamando pelo enfermeiro. Foi péssimo, parecia um filme de ficção científica.”

Em 15 de maio, Eliza recebeu alta e pôde retornar para casa. “Voltei para os meus”, comemora. Entre a gratidão por ter enfrentado um vírus desconhecido, que tem espalhado tristeza e sofrimento pelo mundo, e a confiança nas orações, uma feliz coincidência trouxe um abraço distante. “Minha mãe, se estivesse viva, faria aniversário no dia que saí do hospital. Tenho certeza de que foi um presente do universo, que ela pediu e cuidou de mim”, afirma, emocionada.

De volta ao lar, ao lado de um dos filhos e do neto, no lugar que chama de seu e que mais sentiu falta, ela retoma a rotina. “Ainda não consigo abraçar meu neto. Tenho medo de contaminá-lo, ninguém sabe nada sobre o vírus. Ninguém garante que isso me deixou imune a um novo ataque. Tenho que retornar ao hospital em 30 dias. Enquanto isso, tenho um pouco de pânico de sair nas ruas, de ver as pessoas sem máscaras. Fico agoniada”, comenta.



Resiliência e fé

“Você fica sensível. Toda aquela rigidez da vida é quebrada. Eu me lembrei muito da minha mãe, das vezes em que fui difícil, lembrei o tanto que ela foi guerreira, que ela lutou por mim. Hoje, eu me sinto mais forte espiritualmente. Não que antes não me apegasse a Deus, mas eu senti, dentro de mim, o poder que Deus tem tanto de dar a vida quanto de tirar”, diz a cabeleireira e confeiteira Giszelle Marçal de Lima Duarte, 38 anos. “Pedi todos os dias para que Ele não me deixasse só e a sensação foi essa. Não quero nada dessa vida, eu só quero a Tua presença, a minha família”, afirma.

Em casa, ao lado do marido, Fábio Soares Duarte, 37, e do filho, Carlos Eduardo, 12, beijos e abraços ainda não estão permitidos. Contudo, a sensação é de aconchego. “Depois de 15 dias internada, sair daquele clima de hospital é ótimo. Pelos sintomas que tinha, eu me sinto perfeita, mas ainda não sabemos se podemos contaminar o nosso filho; por isso, optamos por manter todas as recomendações e cuidados”, justifica. O verbo é na segunda pessoa do plural, porque tanto ela quanto Fabio testaram positivo para covid-19. Diferentemente dela, ele ficou assintomático.

No início de maio, Giszelle começou a sentir dores no corpo, principalmente nas costas e na cabeça e febre. “Nos primeiros dias, fiquei em casa, porque tinha medo de ir ao hospital e ficar contaminada pelo coronavírus”, lembra. Com o passar do tempo, o quadro se agravou. A primeira visita ao hospital resultou em um possível diagnóstico de H1N1. “No dia seguinte, quando retornei, porque as dores estavam insuportáveis, fui transferida para o HRAN. Cheguei lá e minha vida virou um pesadelo. Já me colocaram no oxigênio, examinaram meus pulmões e já tinha comprometimento de 70% (dos pulmões) e eu estava começando a ficar sem ar”, detalha.

Qualquer movimento piorava a situação e os médicos avisaram à paciente que ela não podia fazer esforço, caso contrário, poderia ter uma parada cardíaca. “Fiquei apavorada com a história de me intubarem e me levarem para a UTI. Dormi esse dia pedindo muito a Deus para que não fosse preciso, pedi que Ele devolvesse o meu oxigênio e, graças a Deus, a saturação foi melhorando”, comenta. Para a cabeleireira, a ficha do que estava vivendo demorou a cair.

“Não sei se é o vírus ou se são os medicamentos que mexem com a gente. Mas eu contava nos dedos, de acordo com o papel que ficava na maca e sempre marcava três. Me questionava quanto tempo estava ali? Não é possível que passam dias e continuam sendo só três. Parece que mexe um pouco com a memória da gente, os médicos até passam perguntando se sabemos onde estamos”, relata. “Fiquei meio fragilizada, mas não pensei em momento algum sobre a morte, só ficava tentando entender o que estava acontecendo comigo. Foi tudo muito rápido”, afirma.

Perto de receber alta, a ansiedade aumentou. Uma mistura de querer sair rápido daquele lugar com medo de voltar a sentir a falta de ar. “Parecia um pesadelo”, descreve. Foi realmente a crença em algo maior que fortaleceu Giszelle. “Eu falava constantemente com Deus: o Senhor é o autor da vida. O Senhor é quem decide quem fica e quem vai. O Senhor tem um propósito. Pedia que Ele me curasse e que devolvesse a normalidade para o meu corpo, também. Pedia para cuidar de cada um que estava ali, oferecia uma palavra de conforto para os que estavam ao meu lado.”

Muito segura por ter vencido a batalha, a paciente envia uma mensagem para os que ainda, como ela, lutam, diante de pequenas ações, contra a falta de ar, contra um corpo que parece querer falhar: “a gente não pode perder a esperança. Existe, sim, cura. A gente tem que acreditar, a gente não pode se desesperar, abandonar a fé. É preciso lutar até o último momento”.



Os médicos pacientes

A luta para salvar vidas de pessoas infectadas pelo novo coronavírus deixa quem está no front de batalha em alta exposição à doença. Foi assim que o infectologista Werciley Júnior, 36 anos, viu-se diante do inimigo invisível. Chefe da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar no Hospital Santa Lúcia, unidades Asa Sul e Asa Norte, assim como do Hospital Maria Auxiliadora, no Gama, o médico se recupera, após quadro grave de covid-19.

A evolução de sintomas foi rápida. Começou com dores musculares, febre e, finalmente, dificuldade de respirar. Em 5 de maio, buscou ajuda na unidade de saúde em que trabalha, e os colegas optaram por uma tomografia. Para a surpresa de Werciley, ele apresentava comprometimento pulmonar de 45%, o que motivou a internação em área isolada. Após dois dias sem melhora, precisou ser intubado. “Eu sabia que tinha a doença, mas tinha uma boa expectativa. Quando fui intubado, fiquei apreensivo, mas confiante. Sabia que era necessário, sou jovem, daria tudo certo, pensei”, conta.

Werciley passou 13 dias inconsciente e não se lembra de nada do período. “O tempo médio de intubação é de cinco a seis dias; então, meu caso era grave. Precisei de várias manobras porque meus pulmões ficaram 85% comprometidos.” No processo, perdeu 22kg, mas está se recuperando. Na volta para casa, colegas de trabalho prestaram homenagem ao médico, com balões, cartazes e um corredor repleto de amigos preocupados. “A equipe do hospital ficou mobilizada e, no fim, teve aquela festa. Mas a vitória é deles, que me ajudaram a ficar vivo.”

Agora, o tratamento inclui acompanhamento com fonoaudiólogos, nutricionistas e fisioterapeutas. “No dia da alta, conseguia ficar em pé sozinho, mas não caminhava mais de 50 metros. Hoje, consigo me levantar, ficar em pé e caminhar de 10 a 20 minutos”, comemora. “Mas o melhor de tudo foi poder tomar banho sem ajuda. No início, não tinha forças. Era uma maratona”, compara.

“Quem trabalha em área de risco sabe que pode acontecer, mas a gente nunca espera que seja com a gente. Estou louco para voltar a trabalhar, mas, primeiro, preciso reabilitar meu corpo.” Após a experiência, ele avalia as mudanças: “A visão de vida é outra, mudei meu perfil, no sentido de viver mais a vida, de trabalhar menos e aproveitar a convivência com as pessoas porque às vezes, a gente foca em outras coisas.”



Isolado em casa


O médico da Secretaria de Saúde Sócrates Souza Ornelas, 37, também precisou deixar, por alguns dias, a correria do hospital para se cuidar, após ser diagnosticado com a doença em 5 de maio. Com sintomas de covid-19, o profissional da saúde foi mais um que passou de cuidador a paciente. “Eu esperava que isso pudesse acontecer. Como estou trabalhando na linha de frente, poderia me contaminar a qualquer momento”, comenta.

O médico começou a sentir sinais parecidos com os de sinusite, com coriza e congestão nasal. Com a presença da febre, desconfiou logo do diagnóstico. “Eu trabalho diretamente com pacientes infectados, então, fui ao hospital e o médico pediu o exame para confirmar. Fiz o teste em 5 de maio e, dois dias depois, o resultado confirmou a suspeita”, conta. Sócrates não precisou ser hospitalizado, mas se isolou dentro de casa. Foram 16 dias sem contato com amigos e familiares.

Ele só saiu da residência para ir ao hospital, quando teve uma piora, resultado de uma pneumonia. Morando com o irmão, os cuidados para não o contaminar foram redobrados. Eles dividiram os cômodos da casa. “O único lugar que a gente compartilhava era a cozinha, mas tomamos os devidos cuidados e não usávamos ao mesmo tempo. Separamos os utensílios, também, para evitar a contaminação”, conta. O contato tanto com o irmão quanto com familiares e amigos era apenas por meio das redes sociais e pelo telefone.

Assim, o médico precisou encarar as dores e o medo do agravamento da doença. “Isso é o mais delicado. Em uma noite, a febre não cedia e eu fiquei o tempo inteiro em claro. A gente fica angustiado sem saber se a doença vai piorar”, ressalta. Sócrates afirma que os sintomas se agravaram com o passar do tempo. O conforto só veio quando a febre finalmente cessou e os sintomas desapareceram. Um exame confirmou a recuperação.

“Foi um alívio. A gente está aqui trabalhando com os pacientes e sair de um quadro desses, ver que passou pela doença sem piorar é um alívio”, diz. Livre do novo coronavírus, na última semana, voltou a encarar os longos plantões e a correria no hospital. A luta, agora, é para ajudar outras pessoas a vencerem a covid-19.

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