Correio Braziliense
postado em 09/06/2020 04:07
Esta é a semana de conscientização para um problema social grave, mas que nem sempre é enxergado pela população. Atualmente, cerca de 2,4 milhões de crianças e adolescentes, de cinco a 17 anos, estão em situação de trabalho infantil no Brasil. No Distrito Federal, são mais de 18 mil pessoas nessa circunstância. No campo social, o cenário acentua desigualdades, cria proximidades com outros tipos de exploração e freia diferentes tipos de desenvolvimento do país. Individualmente, essa ocupação ilegal tira oportunidades de estudo, lazer, esporte e cultura, além de deixar as vítimas mais sensíveis a doenças, acidentes e até óbitos. Para combater a problemática, órgãos e entidades de todo o mundo instituíram a data de 12 de junho como o Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil.
A legislação proíbe o trabalho de crianças com menos de 14 anos e permite que os adolescentes com 14 e 15 anos sejam inseridos apenas em atividades relacionadas à qualificação profissional, como aprendizes. Mas a irregularidade continua existindo, mesmo que não haja tanta luz sobre a situação. “Uma dificuldade que temos nessa luta é a de ver e não enxergar. As pessoas passam por uma situação de trabalho infantil sem dar nenhuma importância para aquilo, principalmente porque, na maioria das vezes, o adolescente ou a criança é pobre e negra, e nós sabemos que, infelizmente, há vidas que não valem tanto no Brasil”, afirma Isa Oliveira, secretária-executiva do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI). A especialista lembra que até mesmo o centro do poder do país convive com o problema, que toma diferentes formas, dependendo de cada região. Isa cita que 60% dos trabalhadores infantis, de até 13 anos, estão situados no campo, mas a cidade também registra casos preocupantes.
“Nas grandes cidades, como ocorre no DF, temos a prevalência de um trabalho informal, a venda de produtos em faróis, em feiras e nos terminais rodoviários. Mas isso abre caminhos para muitos outros riscos, como o aliciamento de redes do tráfico, por exemplo”, situa. Para ela, o trabalho de combate a essa situação não é simples e carece de recursos. “Há uma assistência social do Ministério da Cidadania e das secretarias de cada região, que precisam identificar essas vítimas e realizar o acolhimento. Mas isso deve ser feito de forma qualificada, identificando o perfil da família daquela pessoa, facilitando a inclusão em programas de renda, garantindo o acesso à escola e realizando o acompanhamento, coisas que precisam de orçamento, de estrutura física, de pessoal e de gestão”, avalia.
Políticas públicas
Erradicar o trabalho infantil até 2025 é um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) do Brasil. A capital é enxergada como ponto de partida para isso, mas para alcançar a meta é necessário investir mais em políticas públicas e ter mais ações coordenadas entre diferentes setores, como observa a ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Kátia Magalhães Arruda. “O DF, sendo a região mais importante do país, no ponto de vista político, deveria ser exemplo para toda a nação e erradicar essa chaga de vez. Por isso, as políticas públicas são essenciais. Mas, é necessário realizar uma avaliação do cenário atual, das dificuldades, e propor soluções de enfrentamento em que todas as instituições trabalhem na mesma direção, em conjunto”, diz. A ministra também acredita que o combate à desigualdade seja um pilar desse enfrentamento.
“É importante sempre fazer correlação entre ações de combate ao trabalho infantil e políticas públicas de educação e distribuição de renda, porque elas se comunicam para uma solução. A medida que exista distribuição de renda e acesso à educação, a criança tende a abandonar a possibilidade do trabalho”, afirma. Kátia ressalta também que nenhuma vítima dessa problemática está ocupada porque quer, mas sim por falta de oportunidades. Crianças e adolescentes encontram no trabalho a ilusão de uma realidade melhor, algo que não acontece e acaba prejudicando ainda mais a situação atual. “A pessoa perde a infância, fica refém de acidentes e é explorada enquanto existe um número imenso de desempregados adultos”, reflete.
"O DF, sendo a região mais importante do país, no ponto de vista político, deveria ser exemplo para toda a nação e erradicar essa chaga de vez”
Kátia Magalhães Arruda, ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
Palavra de especialista
Reconheço que algumas formas de trabalho infantil possam até ser invisíveis aos olhos do Estado e da sociedade, a exemplo o trabalho infantil doméstico, que ocorre no âmbito domiciliar. Outra forma de trabalho infantil completamente invisibilizada, não porém aos olhos do Estado, é o de crianças e adolescentes no tráfico de drogas, em que a perspectiva do ato infracional prepondera sobre a do trabalho infantil. Os dois exemplos citados enquadram-se nas piores formas de trabalho infantil, e pouco ou quase nada é feito, especialmente no campo da prevenção. Temos também o comércio ambulante praticado por crianças e adolescentes, com venda de frutas, panos de prato, balas, sacos de lixo, entre tantas outras mercadorias, em semáforos, nas vias públicas, em estações e vagões de metrô, nas rodoviárias, em bares, em restaurantes, dentre outros. É uma situação de trabalho infantil que está aí, às escâncaras, completamente naturalizada. E como isso é visto pela sociedade? Como uma saída para famílias pobres. Afinal, a família precisa aumentar a renda familiar. Esse tipo de concepção equivocada atrapalha bastante o enfrentamento do trabalho infantil, sobretudo do ponto de vista do exercício de controle social. Essa aceitação do trabalho infantil como forma de ajudar a família a sobreviver é um dos grandes "mitos" que pairam sobre o tema. O Estado é que tem o dever de assegurar políticas públicas adequadas, de modo a minimizar ou neutralizar a vulnerabilidade socioeconômica das famílias, inclusive como forma de permitir que filhas e filhos desenvolvam-se plenamente e usufruam de escolarização adequada. Só assim, conseguiremos romper o ciclo da pobreza do qual o trabalho infantil é causa e consequência, mas sobretudo consequência. Esse problema rouba infâncias e impede o pleno desenvolvimento físico, biológico, cognitivo, psicológico, moral, social e espiritual de crianças e adolescentes. Proponho à sociedade um exercício de empatia, que conceba toda e qualquer criança como nossa criança, e que reconheça o valor prospectivo da infância e da juventude como portadora da continuidade do nosso povo e da nossa espécie.
Ana Maria Villa Real, procuradora do Trabalho no DF e coordenadora Nacional da Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente, do Ministério Público do Trabalho
Problema aumentou durante a pandemia
De acordo com a Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF), as violações de direitos de crianças e adolescentes aumentaram na capital durante o período de isolamento social, necessário para controle do novo coronavírus.
Entre 23 de março e 19 de maio, houve um crescimento de 18% de casos registrados em relação ao mesmo período do ano passado, o que liga alertas ainda maiores neste momento. Coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Maria Cláudia Falcão diz que a suspensão de aulas presenciais precisa ser acompanhada com cautela para garantir direitos.
“Hoje, mais de 130 mil escolas estão fechadas no Brasil. Há um esforço das instituições para que não haja a perda do ano escolar, inclusive com plataformas virtuais, mas sabemos das enormes disparidades entre as escolas públicas e as privadas. Então, nós da OIT, temos como preocupação a educação interrompida deste período para quem está sem aulas e sem acesso aos meios digitais”, considera.
Maria Cláudia avalia que o momento atual de crise pode aumentar ainda mais o problema do trabalho infantil. “Podemos ter milhões de crianças e adolescentes em situação de exploração e vulnerabilidade ao trabalho, como forma de contribuir com a renda domiciliar”, aponta.
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