Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 10/06/2020 04:17
Laços de amor

Quem parte é o amor de alguém. O título da performance que os artistas realizaram na Rodoviária, no primeiro dia do mês, e, no Museu da República, na segunda-feira, é revelador de uma guinada em relação à abordagem oficial sobre os mortos da pandemia, marcada pela indiferença. O princípio passa a ser o amor.

Esse é o parâmetro que deveria nortear todas as ações. Sob o comando de Hugo Rodas, nosso bruxo emérito do teatro, um grupo de artistas da cidade participou de um lindo ritual, um ritual de luz, de afeto e de leveza. Todos com vestimentas imaculadamente brancas acenderam velas, lançaram balões vermelhos ao céu e projetaram os números dos 34 mil mortos na esfera do Museu da República.

Antes de brasileiro, o uruguaio Hugo Rodas considera-se candango. Não se trata de uma formalidade. Ele tornou-se um dos maiores diretores do teatro brasileiro ao fazer da cidade o campo das suas experimentações estéticas.

A performance é reveladora da profunda interação que tem com Brasília. Utilizou uma linguagem de grande plasticidade, em parceria com a arquitetura de Oscar Niemeyer e a espacialidade de Lucio Costa. Configura uma estética singularmente brasiliense de ocupação cultural. É mais um acontecimento que sagra o Museu da República como um marco simbólico da democracia em Brasília.

Durante a pandemia, fomos reduzidos a números. Recusaram-nos o reconhecimento de nossos mortos ilustres: Aldir Blanc, Rubem Fonseca, Flávio Migliaccio e Moraes Moreira, entre outros. E, agora, querem nos sonegar até os números verdadeiros dos nossos entes queridos.
A performance celebrou não apenas os nossos mortos ilustres, mas todos os brasileiros. Foi um ritual de pertencimento. Ante a ausência de empatia, de compaixão e de humanidade dos governantes, os artistas declararam com o ritual: esses mortos, esses brasileiros, são nossos. Eles estão sempre ligados por laços de amor.

Falaram no próprio nome, mas também em nome de todos os brasilienses e da nação. A performance tem um alcance simbólico, trouxe um pouco de leveza, luz, afeto e reverência ao humano à Esplanada. É tudo o que estamos precisando neste momento para respirar. Não, não somos números anônimos. A vida não é um número, a morte não é um número, o amor não é um número. Quem parte é o amor de alguém.




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