Cidades

Crônica da Cidade

Em feitio de oração

Correio Braziliense
postado em 19/06/2020 04:07
Dizem que, no Brasil, tudo termina em samba ou em pizza. Prefiro que termine em samba. Mesmo porque houve um tempo em que, de qualquer caixinha de fósforo, poderia nascer uma canção genial. Como ninguém ainda fez um samba bom sobre a pandemia, resolvi recorrer a Nelson do Cavaquinho, pois ele é autor de um relacionado à gripe espanhola de 1918. É o que temos de mais próximo da covid-19. Embora seja do início do século passado, é de uma impressionante atualidade, pois toca no tema da compaixão, que perpassa muitos sambas memoráveis de Nelson.

Ele sempre dizia que a composição sua da qual mais gostava era Caridade, que tem versos de pungente humanidade: "Não sei negar esmolas/a quem implora caridade/me compadeço de quem tem necessidade/embora possa sofrer ingratidão/não negarei um pão". É curioso que um sujeito de vida tão boêmia, errática e errada, seja quase que marcado pela sina do bem.
Eu acho maravilhoso esse verso: "Eu nunca pude evitar/ de praticar o bem/ porque eu posso precisar também." O bem é visto quase como uma fatalidade. Essa, sim, é uma visão de mundo verdadeiramente e terrivelmente cristã, que sempre se coloca no lugar do outro e está impregnada da sabedoria de que o mundo dá muitas voltas e pode nos empurrar para situações imprevistas e imprevisíveis.

Mas, na verdade, o samba que eu quero comentar leva o irônico título de Dona Carola. Durante os tempos de pandemia da gripe espanhola, o Rio de Janeiro viveu dias dramáticos, os caminhões passavam pelas ruas recolhendo corpos empilhados. Nelson Cavaquinho foi parar no hospital. Sempre conquistou muitos amigos ou supostos amigos nas noites de boemia do Rio de Janeiro. Mas, quando ficou doente, todos despareceram. As únicas pessoas que o visitaram e o ampararam foram Dona Augusta e Dona Carola, mulheres religiosas e animadas de funda compaixão: "Levantei-me da cama/sem poder/até hoje ninguém/veio me ver/fui amigo enquanto tive dinheiro/hoje eu não tenho companheiro".

Na segunda parte, Nelson desfia aquela filosofia de botequim primorosa e faz o elogio das presenças de Dona Augusta e de Dona Carola, enviadas, talvez, da providência divina. Levaram uma roupa digna para que pudesse sair. Sempre elas, as mulheres para salvar: "Hoje eles fogem de mim/mas não faz mal/amigo é só pra levar meu capital/se não fosse dona Augusta e dona Carola/eu saia do hospital de camisola".

Bem, essa é a parte de Nelson Cavaquinho que faz conexão com a ausência de compaixão, de solidariedade e de empatia de alguns governantes. Mas ele toca, também, em outro drama atual: o da imposição dos valores anticristãos e do desejo de transcendência. É o que perpassa o belíssimo samba Juízo final, parceria com Élcio Soares. Macalé o regravou, recentemente, com muita pertinência. Na verdade, em alguns instantes, vivenciamos juízos finais, quando a história desvela, abruptamente, fatos reveladores.

Ouvi, no carro, ontem, essa canção como se fosse um samba em feitio de oração, perfeito para o momento em que vivemos. Escutei como se fizesse um prece: "O sol há de brilhar mais um vez/A luz há de tocar os corações/Do mal será queimada a semente/O amor será eterno novamente/Quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer".      

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