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Quatro perguntas para

Jaqueline Brizola, doutoranda em estudos históricos da ciência, medicina e comunicação científica da Universidade de Valência e investigadora residente no Instituto de História da Medicina e da Ciência Lopez Piñero

Correio Braziliense
postado em 28/06/2020 04:16
Jaqueline Brizola, doutoranda em estudos históricos da ciência, medicina e comunicação científica da Universidade de Valência e investigadora residente no Instituto de História da Medicina e da Ciência Lopez Piñero

Por que, em situações como a da pandemia do novo coronavírus, retorna a estigmatização social?

Há muitos fatores: o medo, a ignorância dos meios de contágio e, sobretudo, o preconceito. Em outros eventos epidêmicos, ao longo da história, esse comportamento pode ser facilmente verificado. Diante da peste bubônica que assolou a Europa, no século 14, o célebre escritor Giovane Bocácio afirmou em seu livro Decameron que a doença havia começado no Oriente. Em sua visão, os culpados por tamanha tragédia não eram ocidentais nem, tampouco, os ratos europeus, que carregavam as pulgas transmissoras da doença. Nesse caso, os sujeitos que enfrentaram a grande peste não possuíam conhecimento sobre o agente etiológico, mas a ideia de encontrar os culpados permaneceu no imaginário de outros sujeitos, que enfrentaram outras enfermidades. No caso da varíola, que era endêmica no Brasil desde a chegada dos portugueses, no século 16, a cada brote epidêmico, os escravos, sobretudo aqueles recém-chegados da África, eram rapidamente responsabilizados. Mesmo após o fim do tráfico de escravos e da própria escravidão, autores brasileiros, como Otávio de Freitas, advogavam a tese de que os cativos foram responsáveis pela maioria das doenças que se desenvolveram no Brasil. Logicamente, essa premissa parte de um preconceito sistêmico contra os negros. Seus costumes e modos de vida foram considerados perniciosos à saúde por distintos agentes do poder ao longo do período republicano. Em cidades como o Rio de Janeiro, os cortiços, habitados em grande medida pelos descendentes dos escravos, eram vistos como focos de enfermidades, como demonstrou o historiador Sidney Chalhoub, em seu livro Cidade febril. Com o coronavírus e a crise que ele provoca, vemos mais uma vez a busca pelos culpados. Muitos se apressaram em apontar o dedo para os chineses, elaborando, inclusive, teorias conspiratórias de que a China lançou a doença para dominar o mundo, mas, se perguntarmos para esses mesmos sujeitos que elaboraram essas ideias, como o vírus atua e se propaga, certamente não saberão responder. Neste caso, falta informação e sobram ignorância e preconceito.

O impacto da estigmatização social pode ser maior do que o do próprio vírus a longo prazo?
Sem dúvidas. Os vírus que provocam as doenças levam mais ou menos tempo para serem combatidos, mas a tendência é de que sejam eliminados na maioria dos países, pelos cuidados higiênicos ou pela vacina, já o estigma permanece por décadas. Os países mais afetados, ou aquele em que, supostamente, começou a doença, tendem a ser malvistos, pois representam o perigo, além da memória de momentos difíceis. No caso da crise que vivemos, essa situação ainda é mais emblemática, pois, pela primeira vez, populações inteiras de alguns países foram submetidas à quarentena, como a Espanha. Depois de passar por um duro isolamento, é muito pouco provável que os governantes desse país, ou sua população, não vejam com bons olhos a entrada de estrangeiros que partam de lugares onde a doença está descontrolada. A tendência em muitos países europeus, neste momento, é proibir a entrada de brasileiros, por exemplo, pois as notícias que cruzam o oceano são aterrorizantes. O Brasil não está testando em massa nem realizou qualquer medida mais efetiva de isolamento e controle da doença — até outro dia, o presidente referia-se à pandemia como uma “gripezinha”. Evidentemente que esse comportamento gera desconfiança e medo. Neste caso, o estigma não ocorre em função da aparição da doença, mas pela negligência em relação aos seus efeitos. Todos os brasileiros, independentemente de estarem de acordo com a postura do presidente, serão vistos como “aqueles que não controlam a transmissão do coronavírus.” Os resultados disso são imprevisíveis.

Pelo que a senhora apresentou, o quadro não é novo. Por que não conseguimos mudar esse padrão? Há algo diferente da estigmatização social do novo coronavírus para o que foi identificado, por exemplo, no caso da varíola?

Cada situação histórica carrega sua peculiaridade. A varíola foi uma doença endêmica em todo o mundo. Como as pessoas desconheciam o agente etiológico e, em muitos casos, as formas de contágio, pode-se dizer que a doença fazia sua própria história. Já a covid-19 ocorre em outro cenário, completamente diferente. Hoje, sabemos exatamente como o vírus se propaga, temos tecnologia para fabricar uma vacina, e informações para nos mantermos minimamente seguros. O estigma em relação à varíola, no caso das epidemias que venho estudando, dava-se pelo preconceito com as populações mais pobres e vulneráveis e pelo racismo praticado contra os africanos e seus descendentes, que eram culpabilizados por supostamente virem de lugares onde a doença não dava tréguas, o que não correspondia à realidade. Hoje, sabemos que a varíola era recorrente na Europa até a introdução da vacina, entre o fim do século 18 e o início do 19, mas os europeus desembarcavam na América sem maiores problemas, não eram malvistos ou, pelo menos, não tanto quanto os africanos. A nova pandemia que vivemos em tempo real poderá gerar uma visão negativa das populações que vivem em países onde não há um controle efetivo da doença, como é o caso do Brasil.

Como enfrentar a estigmatização social?

Esse é um tema difícil porque envolve muitos fatores. Em primeiro lugar, há que se gerar conhecimento. É ilusório pensar que combateremos os problemas decorrentes de uma pandemia apenas produzindo uma vacina ou um remédio eficaz. Precisamos entender que nosso inimigo é o vírus e não as pessoas que padecem de enfermidades, mas, ao longo da história, temos visto que a atitude mais recorrente é afastar os indivíduos perigosos, isolá-los, estigmatizá-los. Esse comportamento em nada ajuda a enfrentarmos os graves problemas que decorrem dos eventos epidêmicos, porque geram medo e, claro, mais preconceito. Em segundo lugar, é preciso afastar a ideia dos “culpados”. Os micro-organismos existem na natureza e não escolhem um indivíduo preferencial ao se manifestar. O descontrole das doenças tem a ver com nosso modo de vida, com a forma despreocupada que encaramos a fome, a miséria, a falta de higiene e de recursos básicos nos países mais pobres, mas, enquanto não somos afetados, o problema é dos outros. Mais do que nunca, o coronavírus tem nos mostrado que os germes invisíveis matam os pobres, mas também fazem estragos consideráveis entre os ricos, que nossas atitudes de descaso com a saúde pública e com as péssimas condições de vida que muitas pessoas atravessam têm consequências para todos. Se, em vez de elegermos os culpados, pudéssemos buscar soluções para os reais problemas que levam ao desenvolvimento de pandemias, talvez pudéssemos garantir mais segurança em relação a esse tema. É preciso substituir o estigma pela solidariedade, pelo respeito ao próximo, pela garantia de direitos. Temos um longo caminho a percorrer.

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