Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 04/07/2020 04:15
Juliana fará muita falta

Em um dos mais importantes e mais duros livros sobre a história brasileira, a jornalista Daniela Arbex narra como milhares de brasileiros sofreram cruéis torturas e perderam suas vidas no Hospital Psiquiátrico de Barbacena, ou simplesmente Colônia. Ao escolher um título para seu livro, Daniela foi enfática: Holocausto brasileiro. Infelizmente, ela não exagerou. Na instituição mineira, ao longo do século 20, mais de 60 mil internos morreram, após serem trancafiados e tratados de maneira desumana.

Começo com a menção à obra para lembrar como a saúde mental é um tema que o Brasil faz questão de varrer para baixo do tapete — isso se não for possível escondê-lo atrás de muros e cadeados. O projeto da Colônia expressava uma ideia que ainda persiste no Brasil: loucos — e todos os que não parecem “normais” — devem sumir e ser esquecidos. Louco, neste país, parece não ter direito nem voz, parece não ser merecedor de atenção ou de políticas públicas.
Da Colônia aos Caps, os centros de atenção psicossocial, muita, muita, muita coisa melhorou. Ligados ao Sistema Único de Saúde, o SUS, esses centros acolhem de forma humanizada e têm como orientação principal a inserção social dos pacientes. No entanto, tal melhora é resultado de uma batalha longa e cotidiana. Os profissionais comprometidos com esse ideal precisam lidar com recursos escassos e constantes tentativas de retrocesso, feitas por insistentes discípulos de Simão Bacamarte.

É por isso que a morte da psicóloga Juliana Garcia Pacheco, aos 43 anos, no começo desta semana, torna-se ainda mais triste. Além da dor que certamente fica para familiares, amigos e colegas, a partida de Juliana é uma dura baixa para aqueles que lutam pelos direitos dos pacientes de saúde mental. Tive o prazer de conhecer Juliana porque, anos atrás, fui estudar psicologia. Em uma das disciplinas, onde analisávamos justamente o cenário da saúde mental em Brasília e no país, ela se dispôs a ir conversar com a gente. Foi porque sempre ia quando tinha a chance. E fez isso muito bem. Em nenhum momento escondeu os imensos desafios que aguardavam quem escolhesse trabalhar na área, mas a paixão pelo que fazia certamente conquistou muitos dos alunos a seguir seus passos.

Juliana tornou-se militante da luta antimanicomial quando o Distrito Federal não tinha nenhum Caps. Em 2010, depois de participar ativamente do movimento que busca evitar que o país volte a ter Colônias, foi trabalhar no centro do Paranoá. Ficou lá 10 anos, até a última segunda-feira, quando o coração parou de bater, pouco antes de uma cirurgia. “É uma menina que, apesar de pouca idade, conseguiu construir um currículo invejável. A saúde pública perde uma grande profissional. Dificilmente haverá outra Juliana para dar conta do que ela dava. Era apaixonada pelo trabalho, eu nunca vi alguém gostar tanto. Nós todos estamos muito tristes”, disse, à minha colega Ana Maria da Silva, em matéria publicada neste Correio, a também psicóloga Elizabet Garcia Campos, tia de Juliana.

Pelo que conheci dessa profissional admirável, sei que a tia não exagera. Os direitos dos pacientes de saúde mental perdem uma de suas maiores defensoras. Ainda bem que Juliana povoou mentes e corações com seu ideal. Seus alunos continuarão seu importante trabalho, tenho certeza.



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