Correio Braziliense
postado em 05/07/2020 04:07
O avanço do novo coronavírus no Distrito Federal evidencia as desigualdades sociais da capital. É isso que afirmam especialistas, que destacam as vulnerabilidades da população de baixa renda no DF. No primeiro boletim epidemiológico da Secretaria de Saúde que divulgou o recorte da infecção por região, em 26 de março, o Plano Piloto tinha a maioria de casos, com 50 moradores diagnosticados com covid-19, enquanto uma pessoa em Ceilândia havia recebido o resultado positivo. Hoje, Ceilândia concentra o maior número de infectados, com quase duas vezes mais ocorrências se comparado ao Plano Piloto. Para explicar essa mudança que atingiu outras regiões periféricas, pesquisadores lembram que é preciso avaliar amplamente o perfil de cada local.
Além da observação dos índices de isolamento social, é necessário compreender os motivos que fazem as pessoas saírem de casa, uma vez que muitos precisam quebrar a quarentena para trabalhar. Vitória Alves, 18 anos, é operadora de telemarketing em uma empresa na Asa Sul, no entanto, a jovem mora em Planaltina. “Como trabalho longe, não dá para fazer o isolamento direitinho. Preciso pegar ônibus e evito ficar perto das pessoas, mas, às vezes, ele está lotado, e não tem muito o que fazer. A viagem leva de 40 minutos a uma hora, quando está muito engarrafado”, conta Vitória — que tem asma e bronquite e mora com uma pessoa idosa.
Professor de Saúde Coletiva da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília (UnB), Breitner Tavares acredita que o transporte público é um dos fatores que podem explicar o aumento de casos de covid-19 na periferia. “Quanto maior o tempo de confinamento de alguém dentro de um ônibus ou metrô, maior o fator de risco. Muitas pessoas encaram longas jornadas, enfrentam poucas frotas e são impossibilitadas do distanciamento mínimo dentro desses meios”, diz.
Para Breitner, o trabalho é outro ponto que pode influenciar no avanço da doença nas regiões de população com menor poder aquisitivo. “O Plano Piloto tem condições de promover um fechamento que cidades, como Ceilândia, têm mais dificuldade. Não há, efetivamente, um distanciamento social quando classes mais favorecidas continuam utilizando serviços domésticos, por exemplo. A empregada tem que ir trabalhar, o porteiro, também, é obrigado a ir, porque eles não encontram o subsídio necessário e precisam se expor ao risco por conta desse salário”, comenta.
O especialista lembra que o bloqueio histórico a direitos básicos, como educação, cultura e saúde de qualidade, reflete-se no momento atual e que prejudica pobres e negros. Para ele, a situação exige um comprometimento maior do Estado. “Como não há um posicionamento firme de quem representa a população politicamente, acaba-se criando uma permissividade. Ou seja, se alguém acima de mim diz que não existe necessidade de isolamento, por que eu vou fazer isso? Isso gera um efeito no comportamento da população, que se comporta como se o risco fosse algo menor”, sintetiza.
Realidades opostas
Não só os empregos se concentram no centro do Poder, na capital, como também serviços básicos. Edineide de Jesus, 33, está desempregada, mora em Ceilândia e tem um filho com necessidades especiais, que precisa de atendimentos que só encontra a mais de 30km de casa. “Esses dias mesmo, ele teve consulta na Asa Norte. Muita coisa que precisamos resolver é longe de casa e nos obriga a pegar ônibus e a ficar nessa situação de exposição quando eles estão lotados”, relata a mãe. Devido a casos como esse, o filósofo Marcelo Veronez, do Instituto Brasileiro de Inteligência Espiritual (Ibiesp), afirma: “A diferença social em menos de 35km do DF é evidente, não precisa ser especialista para perceber”.
Marcelo considera que, do ponto de vista sociológico e antropológico, a população com menor poder aquisitivo é a mais vulnerável ao vírus, pois vive na periferia e é confrontada com exigências que não existem para a classe alta, como conseguir se manter no emprego, trabalhar de forma presencial e garantir o distanciamento em casas que concentram muitos moradores. “Tem gente que mora no Plano Piloto e está doido para ir à academia, enquanto tem gente que não tem máscara para usar. O coronavírus agravou a diferença social, com uma crise que provocou demissões de empregados com salários baixos e trouxe a necessidade de que eles busquem empregos informais em plena pandemia”, lembra o filósofo.
Observar para mudar
Especialistas como Breitner Tavares e Marcelo Veronez citam que esse é um momento para pesquisas e ações de políticas públicas que tracem o perfil de quem mais sofre com a doença — como raça, escolaridade e renda —, para que essas pessoas mais vulneráveis sejam identificadas e recebam amplo suporte. Atualmente, a Secretaria de Saúde não dispõe dessas informações. “Os dados disponíveis para análise sobre a pandemia são capturados por meio de notificação em um formulário eletrônico único, elaborado pelo Ministério da Saúde e utilizado por todas as unidades do país. Nesse formulário não constam dados como escolaridade e raça, o que inviabiliza esse tipo de análise”, informou a pasta, em nota.
Perfil das regiões
Ceilândia (incluindo Pôr do Sol e Sol Nascente)
Renda domiciliar estimada em um valor médio por pessoa R$1.125,10
Local em que as pessoas exerciam o trabalho 26,5% no Plano Piloto
Meios de transporte utilizados para deslocamento até o trabalho 51,7% de ônibus e 26,7% de automóvel
Plano de saúde 90,6% não têm
Samambaia
Renda domiciliar estimada em um valor médio por pessoa R$ 997,10
Local em que as pessoas exerciam o trabalho 8,8% no Plano Piloto
Meios de transporte utilizados para deslocamento até o trabalho 49,9% de ônibus e 32,1% de automóvel
Plano de saúde 79,5% não têm
Taguatinga
Renda domiciliar estimada em um valor médio por pessoa R$ 2.211,60
Local em que as pessoas exerciam o trabalho 29,5% no Plano Piloto
Meios de transporte utilizados para deslocamento até o trabalho 31,7% de ônibus e 50,4% de automóvel
Plano de saúde 59,5% não têm
Plano Piloto
Renda domiciliar estimada em um valor médio por pessoa R$ 6.749,80
Local em que as pessoas exerciam o trabalho 87% no Plano Piloto
Meios de transporte utilizados para deslocamento até o trabalho 16,1% de ônibus e 71,8% de automóvel
Plano de saúde 17,8% não têm
Fonte: Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2018, Companhia de Planejamento (Codeplan)
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