Correio Braziliense
postado em 06/07/2020 04:22
Pátria sem esperança
Os versos de O Bêbado e a equilibrista embalam o sono de Alice desde os primeiros dias de vida. A potência e a delicadeza da letra encantam meus dias desde a infância. Na adolescência, a voz de Elis era companhia obrigatória e a música imortalizada em sua voz, também. Mais tarde, depois de aprender e compreender o significado desse que virou um hino de resistência durante a ditadura militar, o hábito de ouvir a canção fruto da parceria genial entre João Bosco, Aldir Blanc e a pimentinha se intensificou.
A partir daí, um dos sonhos que nutria durante a vida adulta era justamente o de poder compartilhar a beleza da música com meus filhos. Desejo realizado e o repertório se expande a cada noite em claro ninando bebê. Das divertidas, passando pelas românticas, até aquelas intensas, como a de homenagem a Carlitos, personagem imortal de Charles Chaplin.
Em Mestre sala dos mares o trio escancara, com doçura, firmeza e dor, as origens escravocratas de um racismo que, ao longo dos séculos, tornou-se estrutural na sociedade brasileira. “Rubras cascatas jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas.” Atual como o combate à pandemia que assola o país, a música desvela aquilo que as estátuas erguidas em homenagem a colonizadores escondem e que se passou nas águas e no porto da Baía de Guanabara. “Salve o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais.”
Nesse mesmo Rio de Janeiro que ajudou a desvendar em versos precisos e delicados, Aldir Blanc perdeu a vida. Sucumbiu à luta contra o vírus causador de um mal muito maior do que uma gripe: o da indiferença.
Era uma segunda-feira, 4 de maio, quando, das janelas de suas casas e apartamentos, os moradores de Laranjeiras, bairro onde morava o compositor, aplaudiram o vizinho ilustre. Impossibilitados de saírem, impedidos pela própria razão, eles bradaram “viva!” e agradeceram ao artista pelo legado. Quase dois meses depois, numa quinta-feira, 2 de julho, cariocas lotaram ruas do Leblon no primeiro dia de reabertura de bares e restaurantes. Aglomeraram-se como se intocáveis fossem. Sem máscaras ou qualquer item que lhes pudesse proteger não apenas a vida, mas também a consciência.
O Bêbado e a equilibrista constatou uma situação de horror real vivida no Brasil naqueles anos 1970, mas poderia ser também uma profecia dos tempos de hoje. Tanta gente que partiu, o choro da pátria mãe gentil, de Marias e Clarices, a dor pungente não há de ser inutilmente. Mas, neste momento, a esperança de que o show tem que continuar se esvai em meu coração. O Brasil não mereceu Aldir Blanc. Nós não merecemos o Brasil.
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