Cidades

Uma questão cidadã

As quase 2 mil pessoas que vivem em situação de rua no DF dependem de doações para sobreviver. Além de ações governamentais, projetos sociais levam alimento, roupas e até banho

Correio Braziliense
postado em 09/07/2020 04:19
Pandeiro: Vivendo à margem da sociedade, em barracos de papelão, e dependendo de doações para se alimentar, a população em situação de rua vive o extremo da vulnerabilidade. No Distrito Federal, ao menos 1,8 mil pessoas estão nesta situação, segundo um levantamento feito pela Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes). Durante a pandemia, esse número possivelmente triplicou, como estima o ativista Rogério Soares de Araújo, 49 anos, diretor social do coletivo cultural Barba na Rua.

Mais conhecido como Rogério Barba, ele e outras pessoas engajadas na ajuda a essa população reuniram, ao menos, 28 projetos, montando a Rede de Solidariedade do Distrito Federal. Diariamente, o grupo entrega marmitas e kits de higiene, principalmente em cidades como Ceilândia, Taguatinga, Gama, Santa Maria, Recanto das Emas, Vicente Pires e Itapoã. “Tudo que é iniciativa acontece apenas no Plano Piloto e a periferia ficava abandonada, então comecei a atuar aqui”, destaca Rogério.

Ele próprio nasceu e viveu nas ruas por muitos anos. “Nunca tive pai nem mãe, fui encontrado ainda bebê, abandonado, e levado a um orfanato, onde fiquei até 1989. Comecei a usar crack e álcool, e voltei para as ruas”, recorda. Assim permaneceu até 2014, quando, graças a um projeto social, se reabilitou, passou a trabalhar, e viu uma nova esperança. “A maior dificuldade de quem vive essa situação é conseguir criar um vínculo com a sociedade. As drogas atrapalham e é difícil fazer um tratamento. Outro problema é o trabalho, porque, além de faltar emprego, o mercado é muito exigente”, destaca.

Ele acredita que a chegada do coronavírus aumentou ainda mais as dificuldades para encontrar emprego. Por isso, o coletivo conseguiu quatro máquinas de costura, com o objetivo de ensinar, quem tiver interesse, a empreender. Antes disso, o desafio é conseguir levar comida a todos que precisam. “Quando o governador fechou os bares e restaurantes, ele esqueceu das pessoas da rua, que dependiam também daqueles locais para se alimentar. No Setor Comercial Sul mesmo, nem no lixo estavam encontrando o que comer”, pondera. “A pessoa não está na rua porque quer, e o governo não chega com a comida. Não adianta dizer que o restaurante comunitário está aberto, se ele fica distante 20km. Como vão acessar, se não tem dinheiro para a passagem de ônibus?”


Banho e comida
Há 10 anos, o pastor Jonatas Duarte, 41, criou o Projeto para o Reino, que, uma vez por semana leva comida para pessoas em situação de rua. Com a chegada do novo coronavírus e fechamento de restaurantes, no entanto, ele viu a necessidade de ampliar o serviço. Com a ajuda do coletivo Barba na Rua, ele, agora, consegue fazer esse trabalho diariamente, entregando cerca de 200 marmitas em áreas diferentes do DF, tudo graças a doações.

Uma vez por semana, normalmente aos domingos, o pastor leva uma carreta com banheiro móvel, emprestada por um amigo, para pontos onde, quem quer, pode tomar banho. Eles recebem uma sacola com sabonete, barbeador, xampu, condicionador, cotonetes, escova e pasta de dentes. As mulheres também ganham absorventes, e toalhas são emprestadas a todos. Além disso, ganham roupas limpas para se trocar. “Tudo o que conseguimos vem da sociedade civil. A gente também serve um café da manhã e eles ganham um lanche, para não sentir fome à tarde ou durante a noite”, explica o pastor.

Com o trabalho, ele é conhecido e bem recebido aonde vai. Nas ocupações, ajuda como pode, seja com uma conversa, um telefonema ou levando quem precisar ao posto de saúde. “Graças a Deus, tem dado certo e as pessoas são solidárias. Quando é preciso, tiro do próprio bolso para não deixar faltar nada.”


Com o auxílio do projeto, Pandeiro pôde até tomar um banho. Na ocupação em que vive, em Taguatinga, esse é o único nome pelo qual o homem magro, de 42 anos, é identificado. Ele está na rua desde 1999, quando, conta, foi dispensado do Exército. “Trabalhava no Ministério da Justiça. Diretamente com o ministro. Alto cargo. Mas, por causa das drogas, e meu problema de memória, me dispensaram”, recorda. “Coloca a minha foto no jornal, para a minha mãe ver que eu estou vivo, estou bem. Faz cinco anos que não nos vemos. Ela mora em Xambioá (TO).”

Políticas públicas
Durante a pandemia, a Secretaria de Desenvolvimento Social transformou o Autódromo Nelson Piquet em um espaço de acolhimento para a população de rua. O mesmo foi feito em Ceilândia, cada um com 200 vagas. Outras 320 são disponibilizadas por instituições da rede parceira do governo. Nos locais, as pessoas recebem máscaras de proteção, podem tomar banho, comer, dormir, e lavar roupa. Para conseguir a vaga, basta procurar um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Centro de Referência de Assistência Social (Cras), ou Centro Pop para fazer a inscrição.

De acordo com Kariny Alves, subsecretária de Assistência Social, vinculada à Sedes, os espaços não são restritivos. Os acolhidos não são obrigados a permanecer nos locais, mas devem estar de volta até as 16h para não perder as vagas. “Independentemente da pandemia, é feito um trabalho técnico. É da política de assistência social trabalhar para que as pessoas saiam da rua”, defende.

Logo que o governo suspendeu as atividades nos restaurantes e bares da cidade, a pasta deu início a um trabalho de distribuição de marmitas, o que foi suspenso e a entrega passou a ser feita nos restaurantes comunitários e centros Pop. “É uma forma de garantir a segurança alimentar, em razão da pandemia.”


» Como ajudar

O Projeto para o Reino funciona em Vicente Pires e recebe doações de alimentos, roupas e produtos de higiene. Quem quiser ajudar pode entrar em contato pelo telefone: 9 8683-1902



» Três perguntas para | Maria Lúcia Lopes da Silva, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB) e doutora em política social


O que contribui para o aumento do número de pessoas vivendo em situação de rua?
Alguns fatores são principais: desemprego, rebaixamento de renda salarial, e a questão habitacional. O Brasil passava por processo de desemprego bastante elevado e agora, na pandemia, houve aumento exorbitante da desocupação. Há uma grande margem de pessoas sem renda, então, sem dúvida, há um aumento de pessoas na rua.

Como tirar essas pessoas da rua em um momento como esse?
Aqui, uma das medidas tomadas foi o acolhimento no autódromo, espaço que eu acho inadequado. O governo não desenvolveu um projeto, por exemplo, na utilização de hotéis, como foi feito para idosos e profissionais da saúde. A mesma coisa poderia ser extensiva à população de rua. Não dá para usar dois pesos e duas medidas. Por que irem uns para um espaço e container, e os outros para hotel? Outra crítica que tenho envolve a situação do auxílio emergencial. Muitos estão tendo dificuldades, porque não têm telefone. O auxílio emergencial tinha que ser automático. Está na rua? Aqui está o auxílio. Uma outra iniciativa seria a utilização de moradias sociais. Existem casas e espaços públicos que podem ser usados como moradias por essas pessoas.

Como contornar fatores como o uso excessivo de drogas e o desemprego para esta parcela da população?
O uso de álcool e droga é um fenômeno social. Todas as camadas fazem isso. Mas, realmente, muitos fazem uso de drogas, inclusive para suportar a situação. Não é fácil comer do lixo. Estudos apontam que os fatores estruturais determinam a saída para a rua, não é uso de álcool e drogas. Vão porque não têm renda e emprego. Estamos vendo o desemprego crescendo assustadoramente e a desocupação, também. Se todas as empresas contratassem, em seus processos seletivos, 2% de pessoas com trajetória de rua, já ajudaria. O problema que leva as pessoas para rua é o mesmo que as impede de voltar a ter uma condição melhor. Há uma visão que essas pessoas têm de sair da rua sozinhas, mas que estão ali por escolha individual. É uma questão social. Ninguém está na rua porque quer; isso foi determinado por contingências sociais, fatores estruturais e a saída vai depender de políticas públicas.



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