Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 11/07/2020 04:15
Meu pai chorou

A voz dele do outro lado da linha é ríspida. É diferente do que me lembro, do que diria se me perguntassem como ele é. A fala do meu pai tem hoje um lastro de mágoa e esconde a esperança que ele exala desde sempre. Alivio o meu tom nas respostas porque geralmente sou eu o pessimista, sou eu que olho o mundo com lentes nubladas.

É só um dia ruim, quero acreditar. É só um dia em que até ele sucumbiu à exaustão destes nossos tempos. Ouço meu pai falar com desgosto sobre tudo e penso numa música do Celso Viáfora: “Meu pai chorou/ E dessa vez não tinha sido o vinho/ Ninguém tocava um samba do Paulinho/ Não tinha um filme arrasador/ Sol apagou.” Lembro de um outro trecho, conclusivo: “Eu virei seu filho/ Quando vi meu pai chorar.”

Desligo o telefone com uma sensação estranha. Se ele desistir, por que é que eu, aqui com minhas neuras e perdido ao fazer contas sobre número de mortos, recuperados e infectados, vou seguir em frente? Penso no fardo que damos aos nossos pais, essa ideia de que, mesmo depois de nos criar, cabe a eles permanecer como esteio. Meu pai sempre cumpriu esse papel. 

Não sei se ele chorou, mas eu sinto vontade e me lembro de, quando menino, tive uma iluminação triste ao descobrir que éramos pessoas diferentes e que o que ele tinha construído não era meu. No fundo, tudo o que fiz depois foi um jeito de tentar me aproximar daquilo, de sentir orgulho de mim como eu sentia dele.

Não demora muito e o telefone toca de novo. Atendo. O sopro de uma notícia boa o revira. Meu pai me fala o contrário do que dizia, encontra poesia nos escombros. A voz é brilhante como uma estrela que acaba de nascer.

Acho que meu pai sabe o que não sei. Conhece meandros da vida que desconheço e abraça o mundo com ar de quem sempre quer chegar muito longe. Eu sempre preferi o conforto de ficar onde estou e, enternecido, me emocionar com as flores daqui deste quintal. Sempre preferi o texto à fala, o violão ao canto, as coxias ao palco. Eventualmente, tive de me lançar ao mundo porque ele me mostrou que essa era a parte que me cabia nisto tudo. Se pudesse, eu me apaixonaria pela vida como ele se apaixona por tudo o que está ao seu redor. 

Na verdade, se pudesse, eu ficaria aqui com meus poemas e meus contos escrevendo uma vida que não existe e desenhando versos nas sombras, mas rogaria, com certeza, para sabe-se lá quais entidades que nos regem para fazer com que ele, no fim de tudo, encontre o que sempre sonhou.

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