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Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 29/07/2020 04:18
Clarice no traço

A artista plástica Terezinha Lousada estabelece uma desconcertante conexão entre a situação da personagem feminina do romance A paixão segundo G.H. e a que nós vivemos com o coronavírus. O inimigo de G.H. é uma barata, mas a luta contra o inseto a leva a revelações fulminantes. Depois da experiência, G.H. se insere no mundo, no amor e no cosmos de uma maneira inteiramente renovada. Renasce e nasce.

Clarice não foge das experiências mais duras e extremas. No entanto, não é depressiva ou negativa, sempre busca a transcendência. O contato com as suas ficções costuma provocar impactos e abalos sísmicos existenciais.

Quando era adolescente, Terezinha leu a ficção A paixão segundo G.H. pela primeira vez. Ficou muito tocada pela narrativa provocadora, que passa do espiritual para o afetivo em um átimo. Sentiu-se profundamente mexida nos medos, nos desejos e nas fantasias de mulher.

Porém, quando chegou na parte em que entra uma barata na história, rasgou o livro e jogou fora. Aos 30 anos, ela tentou voltar à leitura, mas não deu conta. Tem fobia de barata. Quando completou 60 anos, em 2018, resolveu ler o livro e colocou para si mesma um desafio: ilustrar A paixão segundo G.H. Como transformar em imagens uma aventura afetiva e espiritual?

“Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais”, diz a personagem G.H.. “Não me é mais necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé. Essa terceira perna eu perdi”. A biografia espiritual, praticamente, elimina a ação e se concentra nos devaneios de uma mulher em frente a uma barata e a um armário.

Terezinha precisou fazer um esforço de imaginação simbólica. Na primeira parte, utilizou o triângulo como representação da terceira perna. Na segunda, usou o círculo. Visualizou a personagem G.H. pelas linhas da boca e dos olhos de Clarice. Terezinha usou os olhos para representar a barata.

Na terceira, tomou como referência o trabalho da artista plástica Georgia O’Keeffe, que se inspira nas flores. Esse exercício de tradução da literatura em artes plásticas resultou em uma série de 50 desenhos.

A exposição seria inaugurada na Galeria Matéria Plástica, instalada no Condomínio Altiplano Leste, sob a direção do artista plástico Luis Jungmann Girafa, mas foi adiada em razão da pandemia. É uma casa dos artistas e realiza exposições de qualidade. A galeria produziu um vídeo sobre a exposição.

Embora tenha nascido, quase que por acaso, em Londrina, Terezinha se considera candanguíssima. Os pais dela, paulistas, se mudaram para a cidade quando ela tinha 1 ano de idade. Participou do movimento de artes plásticas, fez inúmeras exposições e lecionou artes na UnB, de 2007 a 2012.

Traduzir a palavra arrebatadora de Clarice em imagens foi também uma oportunidade de estabelecer uma conexão com Brasília. Clarice nunca escreveu com tanto assombro sobre qualquer outra cidade. Terezinha lembra do que falou uma arquiteta iraniana: o Rio de Janeiro não é uma cidade bonita, é um lugar bonito. É isso que a torna uma cidade maravilhosa.

Enquanto Brasília é toda bela, é um monumento, que incorpora a paisagem, como se tudo fosse obra de Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Terezinha nunca se esquece do alumbramento que teve quando voltou de uma viagem de carro e, de repente, se viu dentro dos espaços abertos do planalto. É como se entrasse no mar.
 
 

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