Cidades

Crônica da Cidade

Correio Braziliense
postado em 01/08/2020 04:16
Estávamos em San Vicente

Meu pai tinha um coração americano. E, um ano depois de morto, inexistente exceto na lembrança, o velho esquerdista, carioca nascido em Minas Gerais, segue me dando lições, mostrando discos, sussurrando canções. A voz suave vem da lembrança, murmurando, fora de tom e ritmo, em um tempo diferente, em outro lugar, uma letra desconhecida, mas, que em breve, arrebataria o adolescente que fui. A sorte é que, hoje, com pouco mais que o dobro da idade, posso ouvi-lo sem as amarras do torvelinho juvenil. Recentemente, ele passou a cantarolar as canções do Clube da Esquina e, também, a repetir o que falava de política, preciso e amiúde, criando entre nós uma ponte no tempo.

Novo Gama (GO). Em algum lugar na segunda metade da década de 1980, a história se desenrolava mais ou menos assim: Guerra Fria, Chernobyl, Assembleia Constituinte, Muro de Berlin, Cazuza, HIV, Sarney, inflação... Um menino alheio às complicações do mundo adulto manuseava o velho LP. A capa de papelão desgastada nas bordas exibia os dois meninos sentados à beira da estrada de terra. A agulha patinava nos veios do disco de vinil, mas não era como se ele compreendesse a voz onírica de Milton Nascimento a despertar de um sonho estranho. Mais de uma década depois, um homem recorda as canções em um estacionamento, preocupado em alcançar as emoções em detrimento dos tons, sob o olhar crítico do filho envergonhado.

Brasília, 2020. Com Trump, Bolsonaro, fake news, ascensão da extrema-direita e pandemia da covid-19, o mundo como conhecemos se transforma de uma maneira que não podemos prever. A caixa de som bluetooth ecoa a canção que roda no celular. “Um gosto, vidro e corte”, entoa Milton. Uma menina, de 5 anos, come torradas e ovo cozido mole à mesa da cozinha enquanto escuta, talvez, sem entender. “Um sabor de chocolate no corpo e na cidade. Um sabor de vida e morte.” O violão latino acompanha a canção.

É graças ao homem que já não existe mais que o velho disco, agora convertido em bits e bytes, espalha-se sobre as superfícies do ambiente, criando equivalências, produzindo uma estranha repetição do tempo. San Vicente, que dá nome à música, é uma cidade imaginária. Milton escreveu a canção quando a América Latina mergulhava em ditaduras, e o Brasil vivia os primeiros anos do assassínio Ato Institucional Número 5. Tempos que meu pai viveu.

E, é como se a sombra dele estivesse ali conosco, comprida e desengonçada. Sinto-me tentado a imaginar que posso senti-lo neste estranho caminho pavimentado de saudade e som, que liga a nossa cozinha a San Vicente, onde ele vive. Mas, a música termina. É a vez de Lô Borges. Estrelas é uma música curta, de 28 segundos. “Poeira, na noite/ A festa da noite/ Guerreira, estrela da morte/ Festa negra amor/ Mas é tarde”. Confiro aflito. A terceira sombra ainda se estica pelo chão, ao lado da minha. Olho para a garota que bebe largos goles de um copo de leite e me completo. Mas sinto, na garganta, um sabor de vidro e corte.




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